Estamos curiosos e excitados. É um projeto do caralho, de deixar qualquer carcaju de focinho e orelhas em pé. O fôlego infinito de Natália Tussi à frente, o poder do Grupo Petiskeira atrás e o paladar comum dos endinheirados dentro: eis o Roister. No comando da equipe de cozinheiros, Tussi mostra mais energia e voz que qualquer outro chefe de cozinha de Porto Alegre. É animador ver uma mulher chefiando uma cozinha desse porte – e desesperador que esse tipo de coisa ainda seja uma “coisa” em pleno 2018.
Às 19h30, já tem fila. Em menos de uma hora fomos encaminhados para o bar e em seguida para a mesa. No balcão, uma bartender simpática conversa e mima uma amiga que fez perguntas. Ela entrega um Yardbird e espera ansiosa por um comentário. Num rombo de espontaneidade, minha amiga beberica e diz sem esconder a falta de entusiasmo: “interessante…”. Caímos – também espontâneos, desculpa – na risada. Pronto, se tornou o même da noite e nenhum outro poderia descrever melhor o Roister. “Interessante…”
Comemos de tudo, bebemos de tudo. Salão bonito e confortável, louça maravilhosa da Alma, alguns empratamentos lindos, algumas cervejas boas, pork bun bom, comidas “interessantes…”, drinques “interessantes…” ou ruins, garçons sobrecarregados e vagando de mesa em mesa perguntando se você é tal pessoa que pediu tal coisa, e sobremesas clichês de dormir com a colher na mão. Cheesecake com frutas vermelhas, banoffee e torta de chocolate? ZZzzz. Em geral, a comida do Roister não é ruim, só está longe de ser “interessante!”.
Talvez eu devesse detalhar prato por prato, mas quero aproveitar a oportunidade para falar sobre algo mais abrangente, condizentemente, encher essa crítica de tempero. Pois então, a comida do Roister é… bem temperada. E “bem temperada” é uma proposta amadora de comida, por isso o resultado se limita ao “interessante…”. Que fique claro: não sou contra temperos e blá, blá, blá. Não estou falando em tirar a massala da comida indiana aqui. Tempero é indispensável, mas nunca suficiente em si mesmo. Miojo com mil especiarias continuará sendo miojo.
Eu sei, tem jurado que vive repetindo o tal de “bem temperado” para cá, de “faltou tempero” para lá. Mas afinal, o que isso quer dizer? Que colocaram a quantidade certa de cominho? “Bem temperado” é, de novo, amadorismo. Quando se começa a brincar na cozinha, logo após dominar o sal, a gente entra na fase do orégano. Joga orégano em tudo, nem muito, nem pouco, justamente para dizer esse tal “bem temperado”. Tudo bem leigos fazerem comida bem temperada. No cotidiano, comida bem temperada é um tesouro. Mas a gastronomia brasileira não pode se limitar à mediocridade da televisão.
Quem quer fazer comida além do ordinário, precisa extrapolar o “bem temperado”. É preciso pensar de outra forma, o desafio não é apenas fazer um frango bem temperado, mas fazer um frango com sabor de frango. “Mas frango não tem sabor.” Depende. E o depende começa lá no começo. Compre um frango bom, criado para ter sabor, não tamanho. Escolha um corte com osso e gordura, doure a pele, faça a gordura derreter e infiltrar na carne, use fogo alto para cozinhar rápido e preservar a umidade, deglace o fundo da panela… Pronto, frango tem sabor.
O tempero deve realçar e complementar o frango. Vamos dizer… alguma pimenta, okay? Não para colocar sabor num frango sem graça, mas para aguçar e complementar o que ele já tem. Depois, a gente vai além: pensa em acompanhamentos que interajam com esse frango. Não é temperar, é combinar elementos. O que iria bem? Algo ácido e refrescante, para contrapor a gordura da pele e a picância da pimenta. Salada? Pode ser. Mas algo diferente, interessante! Uma salada de acelga, funcho, caqui e vinagre de pitanga? Sei lá, talvez. Existem tantas possibilidades além de trocar a alface por rúcula e a cebola por cebola roxa.
Se a gente colocar uma pitada de olhar histórico nesse texto, comida bem temperada é coisa de Renascimento. A modernidade ocidental tem origem justamente no comércio de especiarias asiáticas. É a marca da superação da Idade Média: colocar especiarias para esconder a podridão da comida numa época sem geladeira ou tecnologia agrária moderna. E aí, o que é superar o “bem temperado” renascentista senão a nouvelle cuisine? Na Idade Média, se comia o que tinha, peixe podre. No Renascentismo, peixe curado soterrado de temperos, enfeites e molhos. Na nouvelle cuisine, peixe fresco.
Falta ao Roister justamente esse pulo para a nouvelle cuisine, fazer pratos que elevem seu insumo, que destaquem o frango do frango, a cebola da cebola, o pastrami do pastrami, o salmão do salmão. O padrão é soterrar em temperos e depois buscar equilíbrio diluindo em farinhas. Eles sabem combinar direitinho: pastrami defumado com coisas ácidas e picantes, salmão curado com coisas gordurosas e refrescantes. Mas na hora do vamos ver, tem muitos temperos e acompanhamentos tentando falar e um pãozão para silenciar todo mundo. Morda a comida. Cadê o protagonista? No fundinho, todo tímido, tadinho.
Talvez essa seja a proposta do Roister: um tributo ao Renascentismo. Pegar ingredientes sem graça, encher de tempero e depois fazer render. É válida na comida cotidiana, do orégano e do amido. É válida na comida industrializada, dos saborizantes e das gomas. É válida num lugar como o Roister? Poderia ser, por que não? Farei a heresia de comparar. Nada mais é que aquele australiano que não é australiano. É isso. O Roister tenta gourmetizar o Outro. Quer decepção maior que a similaridade dos cardápios? Quatro cês: cerveja, cebola, costelinha, cheesecake.
Não me entendam errado, tenho coceira só de pensar nesse tipo de lugar, mas, no auge da honestidade e imparcialidade, é preciso admitir que o Outro tem uma proposta clara e sabe executá-la com maestria. Comparem as cebolas. A do Outro tem um formato instigante e original, tem sabor industrialmente inebriante. Tem técnica, tem destreza, tem inteligência, e elas aparecem, chegam à mesa, surpreendem, “interessam!”. Como eles fazem isso? Nunca vi algo assim antes! Já a do Roister… é aguada, é clichê. Ainda está nas grandes navegações.
Uma possível solução seria se render por completo à Revolução Industrial. Afinal, embora digam ser mais do que artesanal, “made by hand”, a batata é “machine-made”. Eu sei, covardia falar da batata, um único detalhe diante de tantas outras coisas boas, tantas qualidades. Mas considero ela um indício. Será que o fôlego-infinito perde a voz diante do poder e do paladar comum? Capacidade, Tussi tem de sobra. Falta ao Roister sair do muro: ou freia e abraça de vez o trash industrial-comercial, ou acelera e ultrapassa o “bem temperado”. O meio do caminho está apenas “interessante…”.
* O crítico trabalhou um dia na cozinha do restaurante em 04/2018.