O sábado estava bonito, queríamos um bom almoço. Ligamos para cá e para lá, mas nada resolveu. E agora? Prestes a nos resignar em algum baratinho, lembramos da Pâtissier. Ligamos, Marcelo Gonçalves atendeu e sua descrição do cardápio do dia soou feito canto de sereia. Fígado e mostarda, pato e aipim? Segura uma mesa para nós! No caminho para a Marquês do Pombal, penso que será a primeira vez que saio para comer depois que vazaram meu nome, estou curioso para saber se algo mudará agora que sabem que escrevo críticas gastronômicas.
Pegamos as duas opções de vinhos em taça, o Etchart Privado torrontés 2017 e o Caballero Reserva cabernet sauvignon 2015. Ambos bons, equilibrados e ótimos custos-benefícios. De couvert, fatias frescas, quentes e crocantes de baguete; uma surpreendente ricota com especiarias; os icônicos patê de fígado, mortadela e manteiga com pimenta rosa. São combinações simples, assertivas e deliciosas, fogem do comum sem grandes pretensões. A salada de folhas, fígado de frango frito na sálvia, molho de mostarda dijon e parmesão é a cara da Pâtissier: terrosa, umami, reconfortante. Uma salada aconchegante? Só o Marcelo mesmo. Pena que conforto não combina com acidez, picância ou frescor, o molho de mostarda quase não aparece, senti falta.
O chefe de cozinha aparece no salão e cumprimenta mesa por mesa, um ritual tão tradicional quanto a Pâtissier. No início dos anos 1990, Marcelo Gonçalves estudava engenharia e trabalhava na CEEE quando, numa porralouquice, trancou tudo e viajou para a Europa. Depois de dar umas voltas, arranjou emprego para lavar louça num restaurante embaixo do quarto que alugou na Suíça. Não escapou, foi convertido cozinheiro. De volta a Porto Alegre, levou anos, e muitas madrugadas fazendo doces na cozinha de casa, até fixar de vez a Pâtissier no galpão que sempre namorou, mas nunca esteve à venda – encheu o saco do dono até conseguir alugar a parte da frente. Desde então, foram muitos vai-e-volta, altos-e-baixos ao longo das décadas de Pâtissier, mas vai ficar para outra pessoa contar essa história.
Ao chegar a nossa mesa, Gonçalves me olha de canto de olho. “Que loucura, em?” “É… fazer o quê?”. Voilà, me tornei o cliente mais infame da cidade. “E você viu tanta trapalhada na minha cozinha…” Eu fico surpreso. Ele está apreensivo por causa de um zé ninguém como eu? Vinte e um anos de Pâtissier e ele continua inseguro, humilde, em autonegação. Só pode ser esse o segredo dele, é isso o que o distingue: sua insegurança. Por nunca se tomar como garantido, ele sempre se garante. Quanto ao que vi na cozinha dele, a única coisa que importa ser dita é evidente para qualquer um que vá ao seu restaurante: ele respeita imensamente seus clientes.
Isso é raro, nós humanos sempre culpamos o outro. São os clientes que não entendem de comida, não reconhecem o que é bom, não sabem que tal prato é assim ou assado, não valorizam o trabalho. É fácil compreender porque os cozinheiros pensam assim: existe uma assimetria na relação cozinheiro-cliente. Enquanto que para o cozinheiro o meu prato é apenas um de dezenas e dezenas que ele fará naquele almoço, o meu prato é o único que comerei naquele almoço. Conhecendo o outro lado, sei que é herculano não se anestesiar. O que importa se cada prato não estiver absolutamente perfeito? Tenho outros quinze para entregar nos próximos 10 minutos, não há qualquer chance de pensar em quem está do outro lado. Cria-se uma certa indiferença assim como plantonista vendo sangue jorrar a noite toda. É pela sanidade.
Marcelo é diferente, ele é meio insano mesmo. Passou um pouco do ponto? Está ligeiramente salgado? Ficou cinco minutos esperando na panela? Ele não serve sem corrigir – e muito menos joga um grão de arroz fora. Nunca, nunca o vi abrir mão do que considera o ideal. É isso que vi na cozinha dele, mas desconverso, puxamos outros assuntos e, quando ele se afasta da nossa mesa, tem uma ideia. “Marcelo [seu braço direito no salão é seu xará], traz um azeite para eles. Aquele verde, tá?” Verde, a cor da garrafa? Ih, vê lá, em! Gonçalves volta para a cozinha e o (outro) Marcelo traz uma garrafa de Verde Louro para nossa mesa. Ah, se o Gonçalves não sabe agradar cada cliente. Agradeço e corro direto para o ano do envase: 2018! Ah se não sabe! Duvidei, sambaram na minha cara. Um a zero para a Pâtissier.
Olho ao redor, nenhuma outra mesa ganhou azeite, muito menos um Verde Louro prensado mês passado. Não é exatamente o tipo de azeite que você encontra passeando no supermercado, precisa ir atrás para conseguir um 2018 em maio. Com a colheita mixuruca desse ano, é até necessário uns contatos para conseguir os bons azeites gaúchos dessa safra. É, pensando bem… foi um excelente favor me tirarem do anonimato. Eu posso me acostumar com esse tipo de mimo, posso muito bem me acostumar.
O principal, confit de pato, aipim cremoso, farofa, vagem, wasabi e molho a base de shoyu, chega e meu primeiro pensamento é: pouco molho, vai acabar na metade do prato. Provo cada elemento separadamente, a comida é novamente aconchegante. Meu amigo diz excitado: come tudo junto com o wasabi. Eu sigo a ordem e mastigo. Meus olhos se fecham involuntariamente. Diferente da salada, há o contraponto, um pequeno detalhe que muda tudo: o botão de wasabi na borda do prato. Parece ser apenas uma sugestão, algo dispensável. Mas a picância e o frescor da raiz forte é o que fecha a conta, é o que liga a última chave e faz tudo brilhar. E quando chego ao final do prato, me surpreendo de novo: nenhuma gota de molho a mais ou menos, nenhuma. Dois a zero para a Pâtissier.
Retiram os pratos e esquecem de levar o azeite. Não sabem que, ao fim do principal, tudo da mesa precisa sair? A sobremesa vem e nem assim se tocam de tirar o azeite. Que absurdo! Experimento a etòile de massa folhada, ganache de chocolate amargo e chantilly de chocolate ao leite. É boa. Anotem: qualquer sobremesa de chocolate depende basicamente de dois pontos: 1) a qualidade do chocolate usado; 2) a capacidade em não arruinar a qualidade do chocolate usado. Não precisa ser orgânico, artesanal e cheio de sabores exuberantes – ao contrário, seria um crime acrescentar creme de leite a um chocolate excepcional. Mas precisa ser chocolate, não “sabor chocolate”. O chocolate da Pâtissier é bom. Se meu olfato retronasal não estiver enganado, é aquele belga desalmado (mas bom).
A apresentação é criativa, a massa está folhada, crocante, suave, complementa o chocolate sem concorrer. Há nada errado com a sobremesa, mas ainda assim… monótona. O que falta? Pô, o óbvio. Discorro a quem quiser ouvir sobre a necessidade de trocar o redundante chantilly de chocolate ao leite por algo com aroma, gosto, vida! Nem precisa ir muito longe com um chantilly de aipo, que combinaria muito bem aqui, podia ser só uma bananinha, uma limazinha, qualquer coisa. Meu amigo interrompe meu monólogo apenas apontando para a garrafa de azeite ainda na mesa. Azeite! Mas é claro! Nada como uma pessoa que não resmunga, resolve. Um bom azeite vai muitíssimo bem com bom chocolate. Rego a ganache e dou mais uma colherada: ah, agora sim! Intencional ou não: três a zero para a Pâtissier.
* O crítico trabalhou alguns dias na cozinha do restaurante em meados de 2016.