Gosto de cachorro-quente porque sua simplicidade (ou pobreza) nutricional e técnica é inversamente proporcional à complexidade (ou riqueza) da sua pluralidade social, cultural e geográfica. Acho que parte disso decorre da inexistência de um mito de originalidade primeira, ninguém tem a pretensão de reclamar, discutir ou imitar o que quer que tenha sido o primeiro cachorro-quente do mundo. Afinal, que importa? Seria patético se alguém resolvesse proclamar-se criador do cachorro-quente, inventar uma lista de regras para o “verdadeiro”, vomitar aquele reacionarismo comum a outros mitos de originalidade. Muito melhor essa diversidade de tradições locais, muito melhor a apropriação cultural sem pretensas hierarquias.
Em geral, cada cidade tem um cachorro típico, um cachorro a sua moda, que surge com algum carrinho e acaba imitado por outros. Em São Paulo, se coloca purê de batata. Curitiba, vinagrete de pimentão. Brasília, pasta de alho. Os caipiras cozinham salsicha no molho de tomate quando fazem em casa, mas compram com frango desfiado na rua. Manaus come kikão; Montevidéu, pancho; Berlim, Bratwurst. Em Nova Iorque, leva picles, cebola caramelizada e chucrute. Os carrinhos do Rio provavelmente servem o pior cachorro-quente do mundo: pão velho e seco, salsicha com sabor de serragem, ervilha e milho com sabor de lata, ketchup ralo, mostarda rala, maionese rala, batata palha murcha, com ou sem ovo de codorna em conserva.
Em Porto Alegre, o carrinho de rua que se destacou e acabou definindo o cachorro-quente tradicional da cidade se diferencia pelo pão umedecido em estufa (bom!), queijo “tipo” parmesão (eca!), “azeite de oliva” (eca!) e salsinha grosseiramente picada (bom!). Por conta do queijo chulé e azeite ranço, eu não engulo o cachorro-quente dos lugares mais dinossauros da cidade, não desce mesmo. O único que gosto é o do Kurtz Dog. Mais povão que os de franquias e o da praça do Rosário, os frequentadores do Kurtz são em maioria trabalhadores indevidamente remunerados que acabaram de sair do expediente. Ali, amenizam a fome antes de pegar o trem ou ônibus para as periferias da Grande Porto Alegre.
O pão é úmido, quente e macio da estufa; a salsicha, batata palha, catchup e mostarda são baratos, são padrões; o milho e a ervilha passaram por tanta água que tem gosto nenhum, nem de milho, nem de ervilha, mas também, nem de lata. Embora tenha queijo chulezento e azeite rançoso, eles não são as estrelas no Kurtz, ficam escondidos, imperceptíveis, soterrados. É, exatamente, gosto do Kurtz porque é um à portalegrense enrustido. Poderia existir um à portalegrense melhor se alguém fizesse com parmesão argentino (R$55/kg no Mercado, mais barato que os chulés no super!) e azeite “okay” (aqueles portugueses mesmo). Mas harmonizar queijo maturado com azeite de oliva me soa particularmente difícil.
E aí, há o trunfo do Kurtz, a sua famosa maionese, o único ingrediente colocado em dobro no sanduíche. Em geral, as pessoas se surpreendem com a brancura/clareza da maionese, mas maionese sem corante é meio desbotada mesmo. Ainda assim, há de fato algo que contribui para a brancura da maionese: vinagre, muito vinagre. Aliás, tanto vinagre que, se não fosse a gema de ovo, seria uma vinaigrette. Hoje, chamamos de vinagrete o molho campanha, de tomate, cebola e aromáticos picados em brunoise embebidos em salmoura de vinagre e óleo; mas vinaigrette, na culinária clássica francesa, é uma emulsão (se levar mostarda) ou dispersão (se não levar mostarda) de vinagre em óleo.
Lamba só a maionese. Há o sabor do óleo de soja (tem aquele retrogosto ruim da soja) e do vinagre de álcool (portanto, fortemente acético, sem doçura ou complexidade aromática). Ainda assim, é a untuosidade e acidez da maionese do Kurtz que salva o cachorro-quente, é o que nos faz vencer o meio quilo de comida sem precisar empurrar com refrigerante. O lanche é pesado, bem pesado, em massa, calorias e gordura. Para os peões, são algumas boas centenas de calorias mais gostosas e mais baratas que as dos cachorros dos patrões.