O muro e a calçada cinzas-chumbo (selo Doria aprova) trazem nenhuma indicação, nem o número, eu passo, dou meia volta, passo, dou meia volta, pergunto. Retrabalho. Deveria ter vindo de carro, ser avisado pelo GPS e parar ao ver manobristas? Entro. A fachada (assim como no Alinea?) é um anticlímax, um mata-expectativa para o salão: lindo. Meus olhos se fixam na parede ao fundo, há uma enorme e maravilhosa abertura para a cozinha. Luiz Filipe Souza não está, Fernanda Veiga chefia a equipe essa manhã. A recepcionista me atende e confunde o número da mesa com o número de pessoas. Retrabalho. É completamente inofensivo, não incomoda, mas significa. Significa que está desatenta, que ainda não decorou a ordem das informações na planilha, que não tem os calos da repetição, que não passou o olho pelas reservas, horários, mesas e clientes do dia. Significa que se o Doria tivesse feito uma reserva, ela seria pega de surpresa.
Perguntam se eu tenho alguma restrição, eu respondo, conversam entre si, perguntam novamente, pedem detalhes, eu respondo de novo. Vão para cozinha, conversam com a sous-chef, olham para cá e para lá, conversam aqui e ali, voltam para perguntar pela terceira vez (além de eu já ter avisado por escrito na reserva online, então, quarta) e voltam à cozinha novamente. Retrabalho. Tá, agora não é inofensivo: incomodou. Santa incompetência, restrições não podem ser tão atípicas para gerar tanta confusão. Todo dia entra gente alérgica a alguma coisa, não é possível. E não é só a encheção, se não existe um processo claro, se não estão preparados para lidar com restrições, é fácil errarem. Falta treinamento, objetividade, experiência, calos da repetição. O serviço é amador.
Primeiro prato. O menu degustação começa com um duo. Eu suspeito de duos e trios. Em geral, significam que o chefe não soube escolher, priorizar, direcionar. Mandar preparos juntos é como falar duas ou três coisas ao mesmo tempo: raramente faz sentido. É insegurança (se algo não parece bom o suficiente sozinho, manda dois ou três para ganhar na quantidade), é abster-se da escolha (num menu degustação, queremos ver o que o chefe tem a oferecer, quais são as suas escolhas, o que ele prioriza). Eu priorizo a “bombe de stracciatella, pomodori pelatti e PANCs”. O sabor fortemente amanteigado (no melhor que uma manteiga pode ser) e a textura crocante e elástica como um pão de queijo (no melhor que um pão de queijo pode ser) me desarmam. O recheio é complexo e harmônico. As folhas, uma a uma, explodem em aromas e gostos diferentes; a acidez e gordura do queijo (com toda a riqueza que o cream cheese sonha ter e nunca terá) e a doçura do tomate pelado fazem a ligação entre os elementos. Absolutamente excepcional.
A “tartellete de figo, marsala e raspas de foie gras” não conversa com a bomba. São dois mundos completos em si. Fossem amouse-bouches, poderiam vir juntos. Mas não são. O chefe sabe disso. O guardanapo no prato, formando uma apresentação esquisita, quer deixar clara a distância entre as duas entradas. Então, por que servir juntas? Porque são sete tempos e se servissem separado seriam oito? Ah, por favor. Todo mundo espera ansioso por extras num menu degustação, todo mundo quer ser mimado. O foie gras, embora volumoso, não aparece na boca, não protagoniza. Há flor de sal demais no figo. A massa é finíssima (um milímetro?), crocantíssima, fortíssima (a tortinha é grande, o recheio pesado e úmido, e ela dá sinal nenhum de que irá quebrar) saborosíssima (novamente, no melhor que uma manteiga pode ser) e tem espessura homogênea em toda a sua extensão, incluindo nas arestas. Fico embasbacado com o primor técnico. Um cubinho de marsala com flor de sal roubado do figo explode na boca, eu arrepio de prazer. Há falha ao não destacar o foie gras, mas as qualidades se sobrepõem.
Segundo prato. Servem “tartar de tomate, azeite de oliva e pasta de alho”. Desnecessário chamar de “tartar”, né? Bem desnecessário. Vou direto no azeite: puro defeito, me dá ânsia, está intragável. Deixo de lado, vai voltar para a cozinha. Possivelmente o que colocaram para espessar o azeite – xantana, eu imagino – o oxidou. Será que não provaram pronto? Ou acharam que a ideia de um azeite gelatinoso valia mais que o sabor dele? Não vale, nem perto. O pão é lindo, tem casca crocante e alvéolos irregulares, mas nenhum sabor, sinto apenas a farinha polvilhada em cima. Pena. A pasta de alho é nada mais que pasta de alho. Juntar pão, tomate, alho e vários brotos de coentro rende uma mordida prazerosa, porém, sejamos francos, qualquer churrasco de domingo oferece uma mordida de pão, alho e tomate como essa. Se a bomba de stracciatella foi um tiro certeiro (ingredientes de sabores complexos tratados de forma objetiva e harmônica), aqui, o tiro saiu pela culatra: exageraram na manipulação (azeite cremoso, pão bonito, tomate fantasiado de carne) e simplificaram demais nos sabores.
Terceiro prato. A graça do “crudo de robalo ligeiramente defumado com pedaços de amêndoas, lâminas de abóbora, grapefruit e infusão de abóbora” é que tudo está cru; o conceito e a apresentação me chamaram atenção assim que vi o prato no Instagram semanas antes. Gostei da ideia, do desafio (acho bem OuLiPo, adoro comida que parte de restrições, que faz o cozinheiro a quebrar a cabeça), também diverte usarem o infusor Porthole da Crucial Detail criado para o Aviary. Mas o resultado é decepcionante. O peixe está com aroma de “peixaria” mais forte do que o desejável e aroma de defumado completamente inexistente: está há um par de dias na geladeira. Olho para os lados, as mesas são ocupadas por casais acima dos 50 anos, metade acompanhado por um ou dois filhos. Sou o único no salão todo que pediu degustação. O restaurante vive de à la carte, por isso o robalo não é novo.
Masco o peixe, masco. Há cartilagem, está borrachudo. Será que era essa a ideia, algo para mascar? Tento manter a mente aberta, não quero ser o conservador que incompreende vanguardas. Mas, aí, seria melhor um filé (sem cartilagens) de peixe curado e intensamente defumado, não? Continuaria cru e seria delicioso. Quanto ao amargor da toranja… esse prato precisava mesmo era de acidez. Peixe velho e borrachudo pede algo que ajude a vencer o esforço, que faça salivar, não algo que dificulte ainda mais. Por que escolheram a toranja? Queriam ser diferentes substituindo o limão, mas erraram porque não compreendem o papel do limão? Ou acham peixe cru com acidez uma combinação clichê demais? Olha, mais do que clichê, me soa necessário. É a mesma coisa com picância. Eu mataria por uma pimenta aqui. De novo, é clichê? Sim. Clichê porque funciona, clichê porque necessário.
Coincidentemente, fazia menos de um mês que eu fora ao Aviary e bebera um Lovely Bunch, então achei o uso do Porthole no Evvai insuficiente, não explorou com justiça a genialidade da criação, a interatividade do balanço, a beleza do desenho, o destaque para importância do tempo na construção de sabores. Mas, tudo bem, foi azar da coincidência, nada impede que o Evvai use o Porthole como uma garrafa qualquer. Um outro detalhe não foi azar: estava salgado demais, erraram a mão na flor de sal. Até porque, vamos lá, eu amo a crocância e a explosão de gosto, mas jogar flor de sal em tudo? Não sabem fazer outra coisa? Enfim, o crudo, no geral, buscou a inovação pela inovação, fazer diferente para se dizer diferente. Oras, fazer diferente é fácil, qual o desafio? Basta colocar coisas aleatórias num prato e pronto: diferente. Precisa fazer sentido, ter fundamento, ser inteligente, harmônico e saboroso.
Quarto prato. O “ravioli de codorna, sanduíche de pasta de gorgonzola, purê de beterraba e picles de uva” estão bonitos. Começo pelo sanduíche: maior tédio, nada mais que pão de forma tostado com meleca de gorgonzola. Qualquer padaria de bairro serve isso, deixo de lado, vai voltar para cozinha. O purê de beterraba, ah!, o purê de beterraba! A textura e a cor são tão lindas! Já tentaram fazer purê de beterraba? Ela não desmancha, não fica lisa. Tem de peneirar e peneirar e peneirar. Ou talvez cozinhar batendo no Thermomix. Honestamente, não sei o que fizeram para o purê ficar tão lindo. O sabor é – surpresa – de milho, algo como um curau salgado (no melhor que um curau pode ser) seguido pelos aromas terrosos persistentes da beterraba. Sem artifícios, apenas beterraba? Acredito que sim, deve ser uma beterraba crioula, orgânica, maravilhosa.
A codorna tem bastante umami, mas passou do ponto – regra número 1 para cozinhar codorna: cuidado, ela é extremamente delicada. Se se cozinha demais, perde umidade, perde textura, fica aqueles frangos desfiados esturricados, difícil engolir, precisa de catchup e maionese para empurrar goela abaixo. Em tese, é o papel do interessante e bonito – com a casca se despindo – picles de uva, mas ele não dá conta, a codorna está seca, a beterraba é terrosa, o sanduíche está entediante. É a uva contra todos e todos contra a uva. Aliás, fiquei sem entender qual era a ideia do prato como um todo. De onde tiraram que ravioli de codorna combina com beterraba e um sanduba de gorgonzola? Na minha boca, eles não conversam, não se entendem. E, em termos italianos, é um antipasto, um primo piatto e um contorno servidos todos juntos lá pro fim da refeição. Bizarro.
Quinto prato. O principal do menu é “filé mignon de wagyu, timo, risotto de cevadinha com açafrão e purê de maçã verde glaceada”. Provo elemento por elemento. O timo bovino está deliciosamente defumado, mas cremoso só por fora, faltou tempo de cozimento em baixa temperatura para ficar cremoso por inteiro. A cevadinha, dificilmente saborosa. (E chamar de risoto acaba com qualquer amizade, né? Para quê? Quem implica fica bolado: não é risoto, pô! Quem não implica, gosta mais dele só porque chamaram de risoto? Acredito que não, acho que só se tem a perder.) O purê, de novo, tem textura e cor lindas. Já tentaram fazer purê de maçã? Não fica lisinho, tem de peneirar, peneirar e peneirar, fazendo a maçã oxidar e escurecer ainda mais. Sei lá que mágica fizeram aqui. Mas, dessa vez, é só aparência, está sem graça, sem aromas, sem doçura, sem acidez. E, me desculpem os belos, beleza não basta.
Ansioso para comer o ponto máximo do almoço, antecipando a carne mais saborosa e mais macia que já comi, levo a faca ao filé e ela quica de volta. Opa, está do lado errado. Viro a lâmina instintivamente, pressiono contra a carne novamente, quica outra vez. Uai. Olho para faca, estava do lado certo na primeira vez. Tento enfiar o garfo, a carne resiste, eu finalmente entendo o que está acontecendo. O tal filé mignon de wagyu está mais duro que músculo de nelore goiano selado na chapa. Uso força para tirar um pedaço, mastigo por cinco minutos, cronometrados, chego a lugar nenhum. Cuspo de volta ao prato. Cutuco todos os pedaços do prato, eles devolvem com força de mesma intensidade e direção, apenas sentido oposto. Perto desse filé, o robalo estava um creme. Aposto que num Warner-Bratzler, o ponto de cisalhamento seriam uns bons 15 kgf. Vanguarda demais para mim? Definitivamente.
Eu largo os talheres. Estou estupefato, tenho vontade de levantar e ir embora. É a única resposta que me soa razoável. Levantar e ir embora sem olhar para trás e muito menos pagar. O que eles podem falar ou fazer depois disso? Como é que eles poderiam dissipar a minha perplexidade e fazer com que o Evvai não fique terrivelmente associado ao pior filé que já vi na vida? Como é que eu poderia pagar R$195 por um cuspe na cara desses? Os garçons percebem que algo está errado, perguntam pelo problema, respondo que a carne está dura. Levam o prato e logo há uma reunião em torno do filé. Todos os cozinheiros e garçons saem mascando com força o chiclete bovino pelo salão e cozinha. Mas o que é isso? Mas o que é isso?
Não me entendam mal. Compreendo perfeitamente que os garçons e cozinheiros tenham se jogado no prato que devolvi. Eu sei que eles passam vontade, que provavelmente têm quinze minutos para engolir alguma gororoba a título de almoço e raramente conseguem experimentar os pratos que servem, porque, ao longo do almoço, demonstraram entender muito pouco sobre a comida. Quer alienação maior que essa? Não é como se fizessem carros de luxo. Se bem que talvez até montadores de carro de luxo entendam mais sobre os carros que produzem – mesmo que nunca sonhem comprar um – do que os garçons sobre a comida daqui. Mas sair mascando o filé pelo salão? Quer quebra maior de protocolos e etiquetas? Adoro informalidade se no lugar certo, mas o Evvai não é boteco, o Evvai não é cantina.
Eu deveria ter levantado e ido embora, mas fiquei paralisado. Continuei sentado embasbacado com cena toda. O sommelier é o único que compreendeu a situação, posso ver que está devastado. Todos os outros garçons e cozinheiros – incluindo a sous-chef – evitam olhar para minha mesa. O sommelier se aproxima hesitante – não é função dele fazer isso. Com polidez, pede desculpas e pergunta se eu gostaria de outro. Eu mal conseguia pensar. “Olha… se for para mandar outro igual, não vejo sentido, entende?” Ele concorda. “Gostaria de outro prato?” “Não sei.” Claro que quero. “Vou trazer o cardápio.” O cardápio? Não quero um prato do cardápio. Quando foi que meu menu degustação virou à la carte? Demoraria bons 20 ou 30 minutos para trazerem. E já estou no quinto prato, não vou comer um principal inteiro agora. “Não, então deixa, quero nada do cardápio.” Ele fica uns segundos parado, sem saber o que fazer, se retira cabisbaixo.
Em seguida, para minha absoluta surpresa, trazem a sobremesa. Como assim? A chefe de cozinha em exercício não vem falar comigo? Vai ficar por isso? Sério? Para coroar, Luiz Filipe chega nesse instante, ela conta o ocorrido apontando para mim, ele demonstra nenhuma preocupação, dá nenhuma atenção, volta a falar animado sobre a reunião que acabara de ter com a equipe brasileira do Bocuse d’Or – dois dias atrás, ele ganhara a etapa nacional do concurso e agora se preparava para ir ao México. Assim, nem mesmo podem tentar se desculpar alegando inexperiência da sous – só para constar: a responsabilidade é sempre, sempre, sempre do chefe, sempre, mesmo quando não é dele, é dele. Estou tão fora da realidade em achar que eles deveriam tentar resolver isso, tentar me conquistar de volta? É demais esperar que revirassem a cozinha atrás de um filézinho macio? Que, não achando um filé decente, mandassem o melhor foie gras com o melhor cálice de vinho e o maior desconto possível? Desculpa, mas lugares decentes, empáticos, honestos fazem isso. Fazem de verdade, de coração, com vontade.
É mais que descortesia, o Evvai não compreende que um menu degustação não é rodízio de pizza, não é bufê mandado aos poucos. Degustação é uma narrativa, uma forma elaborada e comestível de comunicar ideias. Não se pode simplesmente tirar um prato, tirar um serviço. Especialmente se for o último salgado, a carne vermelha, o principal, o ápice da sequência, que no Evvai é particularmente clichê, clássica, mito-do-herói, queijo-veg-peixe-ave-boi. A história do meu almoço não teve clímax. Tiraram a batalha final, pularam a derrota do chefe dos vilões e mostraram direto a volta para casa, o felizes para sempre. Se o Evvai não compreende algo tão fundamental quanto o conceito, a essência, a razão de existir de um menu degustação, como podem oferecer um?
Sexto prato. Bem… me resta comer a sobremesa antes que derreta: “sorbetto de pera, iogurte de cabra e água de pepino” (na perplexidade em que estava, esqueci de fotografar, desculpem-me). Está tão bom, mas tão bom, que quase mudou meu humor. O sorbet é maravilhoso, perfeito em textura, intensidade do sabor, dulçor, aparência, tudo. Absolutamente perfeito. A água de pepino casou perfeitamente com o sorbet. Docinha, refrescante, herbácea e melonácea (pepino é um fruto, parente do melão, também tem o composto 2,6-dimetil-heptanal, o melonal) foi o melhor elemento de toda a refeição, ultrapassou até o purê de beterraba.
Eu viajo: num mundo ideal, a alta gastronomia seria mais como a alta costura na capacidade de influenciar o mercado massivo. Aguardo ansioso pelo dia em que a gelatina de pepino chegue ao meu R.U. Viajo ainda mais. Pressupondo que a chefe confeiteira fez as massas do primeiro prato (a bomba e a tortinha) e essa sobremesa, Bianca Mirabili é um eclipse total no chefe de cozinha. Mas quem fez esse prato? O Evvai não diz. O Evvai dá, por padrão, créditos ao Luiz Filipe. Bem, se foi Luiz Filipe, me leia com atenção: feche imediatamente o Evvai e vire confeiteiro. Se foi a Bianca, me leia com atenção: saia imediatamente do Evvai e vá trabalhar em algum lugar que mereça suas sobremesas (e lhe dê os devidos créditos). Se foi o Pedro Renófio… bem, não tem a cara do Renófio. A segunda sobremesa, no entanto, é típica dele.
Sétimo prato. Diferentes elementos partindo do mesmo ingrediente: bolo gelado de coco, sorvete de coco, geleia de coco, caramelo com farofa de amêndoas, lâmina prateada comestível. O bolo estava cremoso, tudo bem, mas indiscutivelmente cru no centro. Comi as bordas, deixei o meio para voltar para cozinha: passo, obrigado. Coco, coco, coco. Doce demais, aromas e texturas de menos. Foi uma enorme decepção após a sobremesa anterior: bem sem graça. A lâmina, por exemplo, cria uma enorme expectativa (essa coisa prateada tem sabor de quê?) e tem sabor de nada, é só enfeite. Entendo a proposta (à la OuLiPo também), mas faltou conseguir efetivamente oferecer contrastes. O desafio de servir um prato de um ingrediente só é conseguir variações marcantes desse ingrediente. Passaram longe.
No todo, acredito que o Evvai tem a pretensão de ser um grande restaurante somente porque tem ideia nenhuma do que é um grande restaurante. Tempestade em copo d’água por conta de um filezinho mais durinho? Nunca. É impossível ninguém ter percebido que o filé estava duro quando receberam, estocaram, limparam, porcionaram, colocaram no mise, grelharam, emprataram. Impossível. Serviram conscientes, serviram porque não se importam. Luiz Filipe fez nada quando soube o que tinha acontecido, nem mudou de assunto. Se eles não se importam com a maciez do filé mignon do prato principal do menu degustação cujo preço é mais de R$200 (considerando os 10% nada merecidos), eles se importam com nada. Detalhes típicos de um grande restaurante passam despercebidos: prato lascado, guardanapo amassado, nem, ao menos, oferecer troca de talheres se não pensaram em talheres apropriados para cada prato. Por isso meu biscoito de lembrancinha veio quebrado e esmagado, por isso escolhem o café pelo merchan. Não há treinamento que mude isso, é caráter, é índole do restaurante. Falta ao Evvai preciosismo, depender menos na ideia, cuidar mais da regularidade da produção e do atendimento, sistematizar, virar obcecados, completamente obcecados, por excelência. Um bom restaurante não pode depender da sorte.
Exceto a bomba de stracciatella e a primeira sobremesa, todos os outros pratos tinham defeitos. Seis de oito. O serviço é péssimo, péssimo. Luiz Filipe está preocupado demais com o próprio umbigo para dar atenção aos clientes. O Evvai não tem vocação para servir. E restaurantes são, literal e legalmente, serviço de hospitalidade. Ainda assim, o maior problema do Evvai é relativo à comida. Não há uma mensagem clara, fazem comida pela comida, inovação pela inovação. Desperdiçam energia por não saberem o que querem fazer, o que querem transmitir. É promissor? Claro, óbvio. Mas promissor por promissor, qualquer um é promissor, até eu sou promissor. O mundo está cheio de promessas. Falta ao Evvai desempacar do retrabalho, do movimento circular. Falta conceito, fundamento, direção, mensagem. Falta o outro lado da abertura da parede transmitir sinais de vida inteligente e empática.
Apêndice
Da última vez que o Evvai recebeu uma crítica negativa, Luiz Filipe postou foto com toda a equipe ressaltando a rotina de 14 horas diárias. Adianto-me na tréplica:
Primeiro, não compro o discurso de trabalho em equipe. Luiz Filipe prefere receber láureas sozinho. Não menciona, não dá créditos ao trabalho de seus subordinados. Marca fotógrafo e fornecedor, mas não os cozinheiros. Só quando levou paulada virou “equipe”. Estou enxergando coisas? Nunca. Prova disso é a falta de treinamento da equipe. No Evvai, funcionários não são valorizados, são vistos como mão-de-obra descartável, substituível, indigna de investimento.
Segundo, será tão difícil entender que o quanto você trabalha e rala na cozinha não justifica comida ruim? Crítica gastronômica não é troféu de mártir, não é concurso de trabalhador do ano. É comida. As horas de trabalho não só não justificam, como até são argumento contrário: como conseguem trabalhar 14 horas por dia e mandar um filé duro assim? Se eles trabalhassem seis horas por dia e servissem um puta menu degustação, eu ficaria muito impressionado. Aí, eu veria mérito. Agora, trabalhar 14 horas e mandar o menu que mandaram? É atestado de incompetência.
E, desculpa, mas eu vou ter de perguntar: trabalham 14 horas por dia… mas pagam hora extra? Respeitam as leis trabalhistas? Não venha gourmetizar o desrespeito a direitos trabalhistas adquiridos há mais de cinquenta anos, não venha gourmetizar a exploração. Não é orgulho, é vergonha.