Del Barbiere

O Del Barbiere era o melhor restaurante de Porto Alegre. Não porque servia a comida mais gostosa da cidade, um restaurante querer fazer a comida mais gostosa é batalha perdida: mães e avós são imbatíveis. O Del Barbiere era o melhor restaurante porque era o mais inteligente, sua comida tinha conteúdo, fundamento, propósito, tinha algo a mostrar. Quando se pode almoçar bem por R$9 duas quadras adiante, a justificativa para pagar R$55 não pode ser a barriga cheia. Del Barbiere não servia comida apenas para comer, servia comida para pensar a comida.

O chefe de cozinha, Marcelo Schambeck, gosta de pontuar que pertence a uma nova geração de cozinheiros: a que foi para universidades e faculdades estudar Gastronomia. O que poderíamos esperar de uma geração assim? Talvez a tendência ao profissionalismo, à valorização e complexificação do ato de cozinhar, à reflexão sobre a cultura alimentar, ao embasamento científico. Também poderia se esperar uma dedicação que extrapola o retorno profissional habitual, porque são pessoas que poderiam ter investido tempo e dinheiro em carreiras tradicionais.

Aliás, não raramente, esses cozinheiros já seguiam outras carreiras quando mudaram para as cozinhas na esteira da recente valorização da gastronomia. Só que Schambeck não é imigrante, ele mergulhou na Gastronomia direto do Ensino Médio. Como não sou de me segurar nas elucubrações, arrisco supor que é a parceria com a jornalista Flávia Mu que dá à comida dele um certo brilho de quem tem bagagem em outros ambientes além da cozinha. Mu e Schambeck tocam um projeto geo-historiográfico, uma arqueologia de produtos e produtores, o Identidade RS. Com o objetivo despretensioso de documentar histórias de vidas pessoais e profissionais, o projeto é, para Schambeck, uma forma de extrapolar a cozinha, extrapolar a função social de enchedor de barrigas.

Questionado, ele sempre responde fazer comida gaúcha; conta que assumiu essa proposta a partir da provocação que o documentário A linha fria do horizonte e o álbum A estética do frio lhe trouxeram. É apenas um ponto de partida, Schambeck se baseia nas próprias experiências para fugir dos estereótipos e transmitir sua interpretação do que é ser gaúcho. Para ele, a identidade não está na reprodução de receitas tradicionais, está nos ingredientes. Eu ouso discordar, não vejo seus ingredientes como essencialmente gaúchos, embora cultivados aqui. Para mim, sua identidade é sua estética. Schambeck extrai beleza daquilo que costuma ser desvalorizado. Ele intencionalmente faz seus pratos baixos, monocromáticos, melancólicos, frios, para remeter às paisagens do estado. “O frio muda a paisagem e o comportamento das pessoas, o Rio Grande do Sul não faz parte do país tropical”, explica.

 

 

Tá, miçangas, miçangas, mas e a comida? Bem, de entrada, os clientes do Del Barbiere recebiam algo como cenoura, aipo, limão-bergamota, ricota, noz-pecã e brotos de ervilha. A doçura da cenoura é pronunciada e enriquecida aromaticamente pela sua caramelização. Para quebrar o doce, há o frescor herbáceo do aipo e a acidez do limão-bergamota na ricota, ambos complexos e aromáticos. A cremosidade da ricota é a ponte entre os elementos. A crocância e o terroso das nozes adicionam mais uma camada de textura e sabor ao prato. Por fim, os brotos de ervilha dão algo para mastigar, para aumentar a permanência. Todas as intensidades parelhas, todos os elementos harmônicos. É uma obra de arte.

Mas não se deixe enganar pela simplicidade, não se deixe comer desatento, o prato é mais do que seus atributos sensoriais. Quem mais serve broto de ervilha? Só quem está próximo de seus fornecedores têm o privilégio de receber produtos assim, sair da salsinha, cebolinha, manjericão e hortelã.  E a cenoura não é qualquer cenoura, a noz não é qualquer noz, tudo é mais saboroso. As nozes, por exemplo, são gaúchas, estão frescas, não têm o sabor das importadas com as quais estamos acostumados. Como têm alto teor de gordura insaturada, nozes são frágeis, ficam facilmente rançosas e, no fim, as pessoas só comem quando já estão velhas. Se um dia você comer uma fresca, vai pensar que não tem o sabor característico de noz porque o que identificamos como sabor de noz é, na verdade, sabor de seus triacilgliceróis oxidados ou hidrolisados.

Também poderiam receber como entrada arroz, moranga, saquê, algas e cogumelos. O arroz é levemente azedo e gelado, delicioso. Os cogumelos eryngui são uma explosão de umami. A abóbora está magnificamente doce porque é sua época. As algas salgadinhas como furikake substituem criativamente as flores de sal. Doce, ácido, umami e pequenas explosões crocantes salgadas. É um prato lindo e harmônico. Tudo se conversa, tudo se entende. No plano intelectual, Del Barbiere brinca com a culinária japonesa ao mesmo tempo sem rigidez e sem heresia, é o pleno domínio que permite a liberdade. O prato, mesmo ajaponesado, grita Rio Grande do Sul. O estado é o maior produtor de arroz do país, a moranga adocicada no prato salgado é costume gaúcho, o cogumelo é descoberta do chefe em suas andanças e a colonização japonesa, embora muito pontual, também chegou ao Rio Grande do Sul.

A primeira entrada foi seguida por espaguete à carbonara com chantili, lombo defumado, gema de ovo e cebolete. Novamente, Del Barbiere não tem medo de cometer heresia porque domina, trocou a gordura da barriga por um lombo magro e a gordura do chantili. Podemos concordar ou não, preferir ou não, mas não podemos dizer que foi leviano. A segunda foi seguida por filé de frango, brócolis, repolho, batatas e molho de gengibre. O repolho é marinado em vinagre e depois tostado até dourar nos lados. Absolutamente maravilhoso! O molho tem cor linda, está translúcido e napê. No entanto, Del Barbiere também erra. A frigideira estava fria, o frango passou do ponto, está quase borrachudo, sem uma boa crosta dourada para lhe dar aromas e crocância. O frango menos suculento que o desejável só piora as batatas massudas, desmedidas e sem graça.

Os principais só com cubinhos de lombo defumado ou apenas um filé de frango, epíteto do mais banal, deixa claro que o Del Baribiere jogava a carne para segundo, terceiro plano. Quando perguntado, Schambeck apenas diz gostar de vegetais. Ou seja, desafia os hábitos alimentares (e a ideia que se tem de culinária gaúcha) sem alarde, sem sentir necessidade de propagandear a proposta com um monte de palavras anglófonas, sem medo de ser incompreendido, apenas faz e deixa a comida falar por si. A comida do Del Barbiere não tinha gana de ser diferentona/barroca/inovadora, de reproduzir algum discurso de autenticidade, de fazer de conta, ela apenas fazia. Schambeck não prega o que reza, ele só reza.

O resultado em termos de reconhecimento não poderia ser outro: levaram anos para percebê-lo. O Del Barbiere começou em 2007, quando o pai do Marcelo ofereceu espaço na sua barbearia (embora não fosse barbeiro, o filho frisa) para que ele tornasse realidade o projeto de um café apresentado como trabalho de conclusão de curso. Como as tardes do café não eram movimentadas, Schambeck começou a servir almoços inspirados na feira da Epatur, portanto, duas vezes por semana. Em 2009, Schambeck passou a fazer almoço todos os dias e as refeições se tornaram o carro-chefe do Del Barbiere. Os prêmios vieram, inclusive o de “revelação”, somente a partir de 2017. Se não sangue-frio, é demonstrativo de muita coragem, paciência e confiança naquilo que faz.

As sobremesas não são exatamente o forte do Del Barbiere. Pode vir tanto uma decepcionante e enjoativa mousse de chocolate amargo com crumble de chocolate branco, quanto um – mais condizente com a identidade da casa – branquinho (cremosíssimo) de cardamomo (na intensidade certíssima, presente sem ser excessivo, algo raro quando se usa cardamomo), funcho e merengue. Uma sobremesa aromática, com frescores e especiarias, tudo escolhido com muita inteligência para quebrar o doce. Eu ainda achei doce demais. Minhas companhias discordaram, acharam equilibrada. Independente disso, onde mais você recebe algo assim? Que outro restaurante portalegrense serve uma sobremesa sem chocolate, doce de leite, coco, frutas vermelhas ou frutas cítricas? Nenhum. Só o Del Barbiere tinha competência para inovar com inteligência.

Para encerrar, quero falar de amor. A inteligência, respeito, reciprocidade e profissionalismo com que o Del Barbiere tratava seus fornecedores, produtos, funcionários e clientes demonstra a grande ironia de quem faz comida com o coração: o amor não vem do coração. Coração bombeia sangue, só o cérebro é capaz de amar.

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