Uma forma de começar a contar a história do loft da Vasco da Gama, 1020 é com o prêmio nacional de arquitetura que ganhou em 2012 quando foi reformado para ser a residência do então advogado Eduardo Titton. Usando materiais de demolição, o resultado é contemporâneo, industrial, nu e jovem. Repare nas soluções para aproveitar o terreno estreito sem ser claustrofóbico, sem abrir mão de ventilação e luz solar (embora, agora sem o brunch, a casa só abra de noite). Boêmio, sociável e talentoso anfitrião, Titton fazia da sua casa um ponto de encontro de amigos para festas, concertos, exposições, eventos e até, por que não?, competições de totó. No fim de 2015, decidiu largar a advocacia e passou a se dedicar integralmente ao 1020 (e, desde 2017, também ao Agulha).
Contratou duas amigas arquitetas e ficaram dois meses pensando no espaço. Depois de várias ideias, voltaram ao ponto de início: manter a identidade, manter a casa, manter inclusive o nome, que apenas oficializou os apelidos que já circulavam entre os frequentadores, “Loft da Vasco”, “Vasco 1020” ou apenas “1020”. Até hoje algumas pessoas o chamam de Loft e isso alegra Titton, que gosta da apropriação, da ambiguidade entre espaço público e privado. Misturando as referências que tinham de Berlim e Nova Iorque, trocaram a mobília, suavizaram a iluminação, instalaram o sistema de som (antes, os cabos ficavam atravessados pela casa), construíram a cozinha onde era o banheiro, o bar onde era a sala e fez-se o 1020, uma mistura despojada e elegante de Williamsburg com Kreuzberg.
Troque umas palavras com o Miguel à porta, sente-se ao bar e peça para que recomendem um drinque. Sem ensaiarem, Bruna, Bianca, Daniel respondem por padrão: “que tipo de drinque tu gostas?” Não há resposta mais apropriada: o cardápio de drinques autorais da Vasco 1020 é redondo, milimetricamente planejado, não há uma bebida que esteja lá só para preencher cardápio. Sobram apenas a preferência pessoal ou o desejo do momento como critérios de desempate. Vodca, uísque, cachaça? Doce, amargo, ácido? Frutado, herbáceo, cítrico? O cardápio sabe ser diverso e enxuto, sabe dar características ímpares a cada drinque sem que percam a identidade da casa. Volta e meia surgem novidades, drinques temporários, e também é possível pedir qualquer clássico ou qualquer outra coisa fora do cardápio, mas seria um desperdício não se aventurar nos autorais.
Os drinques do 1020 não são apenas inventivos, complexos e fáceis de apreciar. Eles são inteligentes, frutos de reflexão, planejamento e um respeitável conhecimento de mixologia. Cada componente foi degustado, analisado e escolhido levando em conta suas características sensoriais, preço, disponibilidade e objetivo. Nada está aqui porque é o mais fácil ou porque agrada às multidões. Bruna Abeijon, chefe de bar e minha mixologista favorita nesse planeta, é do tipo que lava, corta um por um, maçarica, forneia por três horas, processa e peneira seis quilos de tomate cereja para fazer trinta bloody mary (que, por conta do tempo requerido, não é servido no 1020). Eles poderiam ser mais populares e ter muito menos trabalho se vendessem long neck verde, batata frita e vodca com energético, mas isso é absolutamente impensável no 1020.
Peguemos meus drinques preferidos do atual cardápio, que mudará em outubro. No Agudo, a redução de suco de bergamota orgânica é da Nova Citrus porque a casa não teria estrutura para produzir, padronizar e estocar redução suficiente para o ano inteiro. O vinagre de maçã orgânica São Francisco é menos acético, mais complexo e frutado – algo particularmente relevante quando se vai beber vinagre. O uísque é Cuty Shatty, que, pelo preço, poderia ser interpretado como mesquinharia. Eu vejo de outra forma. Marcadamente suave, o Cuty não apresenta complexidade ou intensidade sensoriais, mas tampouco apresenta defeitos (o que seria esperado dentro da sua faixa de preço). É um uísque para ser misturado e cumpre perfeitamente seu papel no Agudo. Se além disso é barato, mérito do bar.
O Marear é fresco, suave, desafiadoramente salgado e umami. Como nome indica, desperta a leveza e o prazer de uma brisa marítima: a carbonatação da tônica, a acidez do limão e o frutado do midoki abrem alas como um vento que refresca, quando desaparecem, surge o retrogosto do bíter de algas marinhas que lembra maresia e cogumelos. É estranho, é delicioso. O Orla evolui de forma parecida, inicia com o frescor do vinho branco, amadurece para o frutado e adocicado da bergamota e do maracujá, termina no amargo do Aperol apenas para deixar a boca implorando por mais um gole. Alguns drinques seguem o conceito low alcohol, mas nenhum pode ser chamado de aguado ou sem graça. Inclusive, recomendo fortemente o Vivaz, um drinque sem álcool: suco de pepino, água de coco e refrigerante de gengibre feito na casa. O gengibre é o fogo que substitui o álcool, quando está na sua época (inverno), é impossível dizer que o álcool faz falta.
As cinco torneiras de cervejas artesanais seguem o minimalismo e as escolhas certeiras do cardápio de drinques. Corrijam-me os cervejeiros, mas meia centena de barris de chope abertos não é exatamente desejável, a cerveja perde qualidade com o passar dos dias. Melhor poucas opções que se renovam constantemente, trazendo novidades sempre frescas de diferentes produtores que dezenas de torneiras envelhecendo na geladeira (como se alguém fosse experimentar todas de uma vez ou precisasse de tantas opções para encontrar umazinha que lhe agrade). Bem, são escolhas. Aprecio mais a coragem de selecionarem cinco cervejas que realmente valem a pena do que tentarem ganhar na quantidade.
A cozinha é rotativa, aproximadamente a cada mês, entra uma equipe diferente com um cardápio diferente. A curadoria é feita por Ricardo Yudi (também do Justo) que, como professor do curso de Gastronomia da UFCSPA, acaba atraindo, além de cozinheiros profissionais e amadores da cidade, estudantes e recém-formados cheios de ideias e energia. Pode ser arriscado, a transitoriedade habitualmente confere ousadia à comida. Aos cozinheiros, é dada a chance de criar um cardápio dos sonhos, numa cozinha em pleno funcionamento, com clientes garantidos e nenhuma preocupação administrativa exceto a própria comida. O 1020 propicia um ambiente perfeito para a inovação. Decepções (e preços mal calibrados) acontecem até com certa frequência, mas os desacertos apenas tornam os acertos ainda mais preciosos.
Em geral, as pessoas reclamam que não há garçons, os pedidos de bebidas precisam ser feitos diretamente no bar e os de comida, na cozinha. Por isso, também reclamam de perguntarem se queremos incluir os 10%. Entendo que estranhem pagar gorjeta quando não há garçons, mas a Lei da gorjeta vale para todos os empregados do ramo de serviços. Poderiam estranhar mais que os cozinheiros não recebam a gorjeta referente ao consumo de comida, mas também existe nada errado nisso, porque (legalmente) eles não são funcionários do 1020 e (moralmente) já ficam com uma mais que justa porcentagem do faturamento. Pessoalmente, acho a ausência de garçons maravilhosa, torna o bar mais interativo, sociável, dinâmico. Talvez por isso uma certa revista diga que o 1020 é o “melhor bar para paquerar” da cidade. Adoro a forma como o Vasco simplesmente ignora a existência de um prêmio tosco desses. Em Porto Alegre, o 1020 é o “melhor bar”, ponto.
Tudo é legitimamente descolado. Livros em alemão, inglês e português estão espalhados pelo ambiente; bem como o cardápio, uma simples folha A4 impressa ao menos semanalmente. Pratos, talheres e canudos são biodegradáveis (muito antes de virar modinha) e decompostos no minhocário que fica no jardim/horta/fumódromo do próprio bar; você pode levar o húmus produzido pelas minhocas; a senha do wifi costuma ser coisas como “fora Cunha” ou “fora Temer”; água filtrada e fliperama são gratuitos; exposições de pinturas, ilustrações, montagens preenchem as paredes; estrangeirismos só quando apropriado; há lugar para deixar bicicletas; as plantas são maravilhosas; animais domésticos são bem-vindos. Aliás, antigamente, a Dilma – buldogue do Titton – costumava bater ponto no bar. Ela continua mascote da casa, mas anda evitando aparições públicas. Saudades Dilma.
* O crítico trabalhou na cozinha do bar em momentos diversos desde 2016.