Hot Dog Tia Maria

Nas noites dos fins de semana, é comum ter meia dúzia de pessoas esperando sua vez em frente ao carrinho. A primeira da fila está inquieta e animada, puxa assunto, conta que é de São Paulo, vem a Barão Geraldo visitar familiares e sempre tem de levar cachorro-quente para o marido e os filhos quando eles não vêm com ela. O homem atrás entra na conversa: “também sou de São Paulo, e só passei por Campinas se vier aqui”. Ela conclui: “vê? Tem de abrir filial em São Paulo”. Eu entro no espírito e jogo minha companhia na fogueira: “Meu amigo aqui mora há oito anos em Barão Geraldo e nunca comeu um cachorro-quente da Tia Maria.” “O quê?!”, se espantam uníssonos e garantem, “você não vai se arrepender”.

A mulher da frente e meu amigo fazem pedidos cheios de “sem isso” e “sem aquilo”, eu fico irritado. Como é que ela se dá ao trabalho de levar cachorros-quentes incompletos até São Paulo? Como é que meu amigo pode fazer isso comigo? Vai comer pão, salsicha e purê e depois dizer que achou nada demais. Mas é claro que é nada demais! A maionese salgadinha e acidazinha em cima do purê é o que instiga a primeira mordida. A picância da mostarda, a doçura do catchup e os aromáticos do vinagrete são o que tornam pão, salsicha, batata palha e milho sensorialmente interessantes. Podem ser nada extraordinário, mas tem defeito nenhum: salsicha decente, pão macio, batata palha crocante, maionese boa (surpresa: baldão da Aro), purê excelente.

O vinagrete é caprichado: o tomate é maquinado em macédoine e os aromáticos cortados em fine brunoise (nem brunoise, nem hacher: fine brunoise). A cebolinha do purê é ciselée em padronizado meio centímetro. Ambos, purê e vinagrete, ainda são feitos por Maria Furquim, a Tia Maria, que começou a vender cachorros-quentes quando trabalhava no Centro Médico e teve sua poupança confiscada pelo Plano Collor. Seu cachorro-quente mostra que é fácil perceber quando alguma tarefa foi feita por obrigação ou por alguém que sabe e acredita na importância das mais básicas tarefas. Não consigo me segurar, terei de citar minha frase preferida da história da crítica gastronômica: “there is nothing casual about this kitchen”*.

Hoje, quem monta os cachorros-quentes é Gabriel Neves, dono de uma leveza tão sólida que a menciono aqui sem medo de exagerar. É palpável. Maneja as colheres dos recheios como extensões de seu corpo, seus maneirismos calejados são repetidos com precisão a cada sanduíche. Trabalha o purê como quem trabalha um gelato, assim que fica satisfeito com sua textura, o impasta no lanche feito pintor impressionista. Quando termina de montar o cachorro-quente, para um segundo, busca o olhar do cliente e agradece. Não é apenas um “obrigado” mecânico e profissional, é sincero. Ele acredita na importância e responsabilidade daquilo que faz, mais que qualquer “Cheff” por aí.

 

* Ao escrever sobre o Great NY Noodletown em 1994, Ruth Reichl aponta a precisão dos cortes dos vegetais e lança essa frase que brinca com a ambiguidade da palavra “casual”, tanto de ser um restaurante informal, quanto de ser uma comida feita com preciosismo. A frase é particularmente saborosa porque Reichl está alfinetando seu antecessor no cargo de crítica gastronômica do NYT, Bryan Miller, dono de um particular hábito de ignorar restaurantes populares e étnicos.

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