Café da manhã. O waffle tem uma fina camada dourada, crocante e amanteigada que dissolve na boca em poucos segundos, se transformando numa lufada de sabor complexo e delicado. Tem zero dulçor porque, na fermentação longa, as leveduras digerem todos os mono e dissacarídeos, sobrando apenas os polissacarídeos sem poder edulcorante. O interior, estruturado em amplos alvéolos irregulares, é de leveza ímpar. Ao evaporarem, os aromas de Maillard dão lugar a deliciosos aromas de (boa) cerveja, incluindo aí um resquício alcoólico. Diferente de pães, que passam por um forneamento longo o suficiente para evaporar todo o álcool e transformar os aromas de cerveja, esse waffle preserva parte dos subprodutos da fermentação. Trocar o fermento químico pelos inúmeros processos que ocorrem numa fermentação biológica resultou em imensa riqueza. Estou em êxtase.
O curd de laranja elimina qualquer tentativa de resistência essa manhã. Toda a intensidade da casca da laranja preenche a boca de uma forma surrealmente limpa. Os sabores indesejados dos taninos estão neutralizados, até parece que destilaram os terpenos produzidos pelas glândulas oleíferas (tô falando sério, destilaram?) e, numa escolha certeira, usaram a gordurosa e emulsificante gema de ovo para equilibrar e dar cremosidade. O dulçor ao fundo é suave e viciante, me vê um balde disso, por favor. Para completar, o café capixaba Derio (torrado na casa por Natália Braga) é, como promete o cardápio, fácil e acolhedor, inicia com uma leve acidez cítrica, evolui para um agradável amargor encorpado de aromas de frutos secos torrados e finaliza em frutado amarelo. Quer desjejum melhor?
Brunch. A salada de arroz preto, cogumelo, ervilha torta, avocado, furikake, molho de amendoim e cenoura é tudo que você não precisa ao meio dia. Ou à meia noite. Ou qualquer instante da sua vida. Sem sal, sem graça, sem suculência, sem gostos, sem aromas. Servissem capim numa tigela, teria o mesmo efeito. O cogumelo está cru, apenas limpo e cortado; a vagem, apenas branqueada; o molho, insípido e inodoro. O picles e o furikake não dão conta. Ser vegetariano estrito não justifica ser ruim. Trocar o arroz negro solto e maçante por arroz de grão curto úmido, agridoce e geladinho ajudaria. Assim como saltear o cogumelo numa pasta de pimenta; glacear a vagem em melado; trocar o abacate hipster e o molho morto por uma emulsão bem ácida e poderosa. Resolveria.
O sanduíche de ovo na chapa, bacon e pão da casa, queijo orgânico e maionese é fora deste mundo. Que ovo, que bacon, que queijo, que pão! Podemos trocar a salada por mais dois desse? O “miolo de paleta angus, chimichurri, batata, ovo, mostarda, cebola” – assim está no cardápio, guarde essa informação – não conquista. A carne está boa, okay. É um bife batido até quase despedaçar, ligeiramente rosado no centro – guarde essa informação. Não está particularmente macio, mas suculento. O chimichurri carece frescor. A salada de batata é normal, falta sal, falta aromas, só se sente azeitona, falta uma reviravolta, um contraponto. Esse prato está de dormir com o garfo na mão.
Hospitalidade. Duas mulheres sentam ao nosso lado, uma pergunta se sua carne pode ser bem passada. A garçonete dá a volta no balcão, pergunta ao sub-chefe, Ítalo Ramon, ele nega agressivamente. A cliente não fica satisfeita: “mas ele vai me dar o sanduíche? Ele vai comer meu sanduíche? Não vai, vai? Por que eu não posso escolher o que eu vou comer e pagar?” A garçonete também não sabe. Aproveitando que as mulheres estão sentadas no balcão de frente para cozinha, chama o sub para responder diretamente. Ele, contrariado, mas subitamente manso, explica à cliente que faziam bem passado antes, a carne ficava dura, os clientes reclamavam. Resolveram não fazer mais. A ordem é de cima, há nada que ele possa fazer. Ela se resigna a pedir uma torrada.
Minutos depois, a outra mulher, que não tinha problema com carne ao ponto, diz que não gosta de maionese de batata e o cardápio não dava a entender que era maionese de batata. A garçonete, prevendo problemas, puxa o gerente de sala. Ele prontamente oferece uma salada “no capricho” para substituir, a cliente fica feliz. Porém, a chefe em exercício (o sub foi pro intervalo), contrariada, se nega a fazer. Os outros cozinheiros ficam constrangidos. O gerente tenta argumentar, ela mantém: não vai fazer, só com ordem vinda de cima. Ele sai batendo pé até o escritório. Se eu fosse gerente do restaurante e meu gerente de sala aparecesse numa situação absurda dessa, eu saberia que a culpa é minha. As mulheres já terminaram de comer a torrada e o bife quando ele volta para dizer que tem a ordem para fazerem a salada.
Um bom restaurante teria deixado a cozinheira confiante de que não só podia como devia fazer a salada; um bom restaurante teria treinado a garçonete para explicar o que o sub explicou e terminar com uma piscadela: “mas se mesmo assim você quiser, eu consigo para você, só para você”. É batata. Em vez disso, a cozinha, sob ordem ou conivência do gerente e da restauratrice Gabriela Barretto (que pode assinar o cardápio do Futuro, mas chefiar, só chefia a cozinha do Chou), está estagnada numa cultura macho-chucro que foi gourmetizada nos anos 1990. A mesma cultura que cria pratos vegetarianos estritos com má vontade – porque estritos são o hezbollah do mimimi. Até o Bourdain já tinha superado essa, estamos em 2018, sabe? Se o Refeitório é do futuro, a atitude da cozinha é do passado. Toda a minha solidariedade ao chefe de sala, cuja equipe é às vezes amadora, porém sempre afável e cortês.
Jantar. O crostini de ricota e anchova é um paraíso na terra. O pão, feito na casa por Hanny Guimarães, tem a casca crocante, os lados tostados com muita manteiga, interior macio, úmido, elástico. A ricota é rica, contrasta deliciosamente com o sal e sabor fortes da anchova. O picles de cenoura em fita é lindo, doce, ácido e intenso no sabor de cenoura. As panquecas de milho, ervas e queijo da canastra conseguem manter o páreo. Crocantes e amendoadas nas bordas, úmidas, quase cremosas no centro, salgadinhas, frutadas (por conta dos açúcares do próprio milho) e, principalmente, um caipiríssimo sabor de milho fresco. O vegetariano curry de vegetais, leite de coco, grão de bico, cogumelo e arroz basmati é farto em coentro fresco, gostosinho e reconfortante, mas não muito mais que isso.
A sobrecoxa desossada feita na chapa é um soco na cara. Que frango! Pele crocante, carne suculenta, muito sabor: tão simples, tão raro. A maionese de amêndoas – a cara da riqueza – tem zero ranço, zero. O limão fermentado é bem doce, há um forte sabor cítrico e apenas um pouco de amargor. A salada de ervas é um recado a todos os “cheffs” que trocam a alface por rúcula: isso sim é gourmetizar, pensar fora da caixinha, colocar um plus a mais. Apenas regadas com azeite bom e flor de sal, explodem em aromas, crocância, frescor, vida. Que salada! Por fim, o bolo de banana é super bananento, úmido, macio, maravilhoso. O chocolate é chocolate de verdade, poderosamente marrento, poderosamente ácido, desequilibrado sozinho, só pode ser do sul da Bahia.
Deve ser aqui. A comida do Futuro refeitório é tudo aquilo que eu desejo para o futuro do país: objetiva, deliciosa, verdadeira, criativa e inteligente. No futuro, espero que as pessoas troquem as franquias gringas de shopping por lugares como esse. Porque ele mostra que vanguarda não precisa ser elitista, é possível revolucionar a gastronomia brasileira atendendo centenas e centenas de pessoas por dia e cobrando menos de R$40 pelos principais. O Futuro mostra que fazer comida inovadora de verdade não é colocar tempero no frango, baunilha no waffle e rúcula na salada. Mostra que não basta apenas inovar, precisar funcionar, ficar bom, ficar maravilhoso. Mostra que é possível fazer seu pão, torrar seu café, defumar seu bacon, moer sua farinha, privilegiar orgânicos, comprar galinhas felizes, usar ingredientes de qualidade e ainda manter os preços no cardápio iguais ou até abaixo da concorrência. O Futuro refeitório prova que restaurante casual não precisa, não deve, não pode servir comida medíocre.