“Esse sorvete é estranho. Não está ruim, mas não dá vontade de comer mais. Não estou louco pela próxima colherada, estou comendo porque está aqui, sabe?” Eu não poderia concordar mais. Além disso, tem mais overrun (ar incorporado) que os gelatos concorrentes (de ingredientes igualmente caros) e é significativamente mais caro. Eu chutaria bons 60% a 80% de overrun, o que está na média para sorvete e é importante para dar maciez, mas, né: ar é de graça. Fico intrigado, a Frida & Mina é tudo isso que falam: orgânico, criativo, local, casquinha feita na hora, sem conservantes e estabilizantes, sazonal, artesanal, feito com ingredientes caros. Mas na boca, não entrega o que promete. E agora? Por que o resultado é quase… desagradável? E por que está sempre tão cheio se até meu amigo leigo estranhou o sorvete? Fico dias pensando, preciso solucionar essas questões para poder escrever a crítica.
O sorvete de chocolate é indescritível. E não é um elogio. Não é doce, não é amargo, não é untuoso, não é intenso, não é suave, não é lácteo, não é chocolatoso. Ou melhor, exatamente o contrário, é tudo isso. Mas de uma forma estranha, amorfa, incômoda. Também é seco e granuloso (é o overrun que o salva de virar uma pedra). O de açúcar mascavo com noz-pecã está rançoso, igualmente amorfo, incômodo, não chega a ser prazeroso. O de morango tem textura duvidosa, pouco frutado, apenas um retrogosto indistinto de balsâmico, a acidez do morango está mais forte que a do vinagre. O de cerveja é aguado, tem cristais grandes, parece raspadinha, o chocolate (como a boca fica gelada) não derrete, não libera aromas. Um dia, a macadâmia caramelizada estava rançosa. Noutro dia, a macadâmia e o caramelo estavam queimados. Qual é a desse lugar?
O sorvete de chocolate é feito com nada menos que chocolate Amma 100%, puro cacau orgânico da Mata Atlântica do sul da Bahia. Bem, provem o 100% da Amma e me mandem vídeos das reações. Não é agradável, não é equilibrado. Se usassem Amma 75%, teriam um resultado melhor. E não só por conta dos 25% de açúcar – que poderiam ser acrescentados no sorvete em todo caso. Outra diferença é que no primeiro não há adição de manteiga de cacau, no segundo há. As amêndoas de cacau depois de fermentadas, secadas, torradas, descascadas e moídas, viram o tal líquor. Ele pode ser filtrado sob pressão para separar a gordura dos outros sólidos: a gordura é manteiga de cacau, os outros sólidos são cacau em pó. O líquor também pode ser refinado, conchado, resfriado e moldado para virar chocolate.
Na conchagem, é possível adicionar outros ingredientes ao líquor, como açúcar, sólidos de leite, manteiga de cacau. Acrescentar essa última, por sua suavidade, permite corrigir desequilíbrios e melhorar a textura sem baixar a porcentagem de cacau. Então, quando as pessoas dizem que gostam de chocolate amargo, é só pedantismo de quem não entende o que faz um chocolate ser bom (algo como ter orgulho de comprar café “forte”: é o pior café, é café queimado). Teor de cacau é importantíssimo (e normalmente está correlacionado ao amargor), mas não resolve tudo. Amargor não indica qualidade. Chocolate bom de verdade tem riqueza balanceada de gostos, aromas e textura. O sorvete da Frida & Mina reflete – como sorvete de chocolate bem feito que é – as características do chocolate usado: tecnicamente excelente, mas desequilibrado, desagradável.
A Frida & Mina se orgulha de fazer os sorvetes em pequenas bateladas. Parece acreditar que isso, em si, faz o sorvete melhor. Não faz. Quando se defende o artesanal, se defende pelas prioridades que esse tipo de produção costuma apresentar. Feito por demanda, seria mais fresco e saudável (os micronutrientes orgânicos degradam com processamento, tempo, oxigênio, luz). Artesanais podem – deveriam – apresentar maior biodiversidade (a escala menor e o público direcionado permitem trabalhar com ingredientes que não são cultivados e consumidos massivamente), relações comunitárias mais ricas (participa mais do bairro, da cidade) e menor desigualdade salarial (ou mais-valia) entre os donos, gerentes e peões.
Um alimento industrial não é pior por ser feito aos montes, ele costuma ser pior porque normalmente tem como prioridades o barateamento de insumos e processos, o aumento da estabilidade e da validade, a atratividade massiva, rasa e imagética. Pior porque encara mão-de-obra como comódite. O sorvete industrial não costuma ser pior sensorial, nutricional, social e culturalmente por ser feito aos montes, mas por ser feito com gordura hidrogenada, aromatizantes artificiais, gomas, aditivos. Isso não é regra intrínseca ao modelo de produção – é possível fazer industrial sem porcarias e artesanal com porcarias. Fazer aos poucos não garante que o sorvete será melhor, aliás os feitos em grande escala em geral têm controle de qualidade mais rigoroso.
A resposta, então, é que 100% cacau, local, orgânico, artesanal não garantem um bom resultado sensorial. Apesar de todas as vantagens socioambientais que trazem, é difícil consumir e elogiar sorvete feito com ingredientes velhos, queimados, verdes, desequilibrados – mesmo quando o atendimento é excelente: a Frida & Mina tem vocação para servir, mas talvez não tenha para fazer sorvete. Para conseguir um bom sorvete não basta seguir regras, é preciso dominá-las, saber seus fundamentos e saber aplicá-las. É preciso saber comer para ver se funciona. Mas por que a Frida & Mina sempre tem uma fila enorme e ganha prêmios de “melhor sorvete”? Bem, parece que pessoas que compram e elogiam cafés “fortes” e chocolates “amargos” são maioria por aqui.