Sei

Nunca fui muito de sushi, acho caro e insatisfatório. Com certeza existem bons sushis no Brasil, mas ainda não cruzei com eles – e devem custar os olhos da cara. No meu primeiro dia em Tóquio, acordei às 5h e fiz o que todo turista sofrendo com a diferença de fuso horário faz: vai ao mercado de peixe. Infelizmente, o antigo Tsukiji mudou para Toyosu, num complexo de arquitetura contemporânea, asséptica e sem graça, parece um centro de convenções. Sentei no balcão do Sei, uma banca qualquer, sem fila de horas como alguns vizinhos. Pedi o omakase de atum (o café da manhã tradicional nos mercados de peixes japoneses é sushi) para ver se entendia de uma vez por todas a tamanha fixação pelo tal maguro. E aí? Morri e nasci de novo.

Dizem que sushi é sobre textura, e é. Todo mundo ensina errado, mas a importância da mastigação para a deglutição (para a disgestão é mais complexo) é menos sobre diminuir a comida e mais sobre umedecer. Formar o bolus é mais sobre textura que tamanho. Basta se imaginar engolindo uma colherada de farofa (pedaços pequenos) sem mastigar. Imaginou? Não desce, né? Agora imagina virando uma ostra (baita pedação). Desce, não? Um bom sushi de atum “derrete” na boca. Vira bolus quase instantaneamente. No Sei, não somente o peixe gordo derrete, mas também o arroz, que apesar de oferecer alguma resistência na mordida, parece ganhar rapidamente a textura aveludada de um creme à base de ovos, uma sensação que ativa entusiasmadamente meu sistema de recompensa.

Os aromas são majoritariamente vindos do wasabi, embora, claro, o arroz de grão curto (sim, tem aroma, e pode ser muito bom) e o peixe (que deve ter aroma sutil) colaborem. Mas o wasabi é o protagonista no retronasal, por isso ele precisa ser bom. E, céus, como pode ser bom! O retrogosto do wasabi do Sei é tão límpido e persistente que me faz querer nunca mais escovar os dentes. Quero esses aromas deliciosos para sempre na minha boca. Em relação aos gostos, a acidez do vinagre, o dulçor do arroz e a gordura do peixe (me adiantando às pesquisas em considerar por opinião untuosidade um gosto) fazem uma combinação irresistível. Como eu repito, nada instiga mais que o agridoce. Se vier em cima de gordura (como costelinha com barbecue ou torta de limão), é avassalador.

Parece ridículo, arroz branco e peixe cru, qual a dificuldade em fazer isso? Bem, o difícil é conseguir o arroz, o peixe, o vinagre, o wasabi, o saquê, o óleo de gergelim, o gengibre, o nori, o shoyo perfeitos. Mais difícil ainda é tentar descobrir o que perfeito significa para cada variável e suas combinações. Mas a gente percebe mesmo todas essas nuances? Acredito que, sabendo ou não explicar o que sente, qualquer pessoa melecaria as roupas de baixo com o que comi no Sei. Todo o conjunto faz o sistema de recompensa brilhar feito árvore de Natal. Corri atrás dessa árvore de Natal em outros lugares, mais baratos e mais caros. Comi bons sushis de ¥100 (que é o 1 dinheiro deles) naquelas esteirinhas, comi bons sushis de ¥20.000, comi sushi péssimo de ¥2.000, etc. Mas nenhum chegou perto dos maguro do Sei.

Aliás, nenhuma sopa de misô (servida com mariscos) ou conserva de gengibre chegaram pertos dos do Sei. A sopa tem complexidade e harmonia, um abraço caloroso. O shoga gari é ligeiramente mais doce, perfeito para contrabalancear a potência do gengibre, este, completamente sem defeitos sensoriais. Aceito um balde para ficar mordiscando o resto da vida, por favor. Precisei, então, voltar, tirar essa história a limpo. Eu estava faminto e desnorteado ou realmente estava tudo isso? Voltei ao Sei e a segunda vez foi tão incrível quanto a primeira. Os atuns, a missoshiro (dessa vez, vegetariana) e o shoga continuavam ridículos de bom, um orgasmo a cada mordida ou gole.

Pedi ao itamae-san mais algumas peças para experimentar outros peixes, ele atendeu ao pedido com prazer e ousadia. Texturas diferentes, sabores diferentes, mas tão incríveis quanto a dos atuns. O shimaji com seu fígado e uma gota de limão ficará na minha memória para sempre, ao ladinho do hamachi grelhado com óleo de gergelim. Talvez por ser leigo em sushi, gostei infinitamente mais do Sei que de um outro famoso e estrelado, cujas propostas desafiaram minha capacidade de compreensão. Muita gente diz que comer sushi no Japão muda sua vida e eu tenho de engrossar o coro: eu nunca mais serei o mesmo. Mais do que redefinir sushi, definiu novos limites e concepções do que comida pode ser. Mais que redefinir comida, me fez feliz em estar vivo. Tanto assim? Tanto assim.

Deixe um comentário

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑