Arturito

– Oiê!
– Oi, menino! Tu chegou faz tempo?
– Não, cheguei oito em ponto… só tem dois casais na nossa frente.
– Eba!
– Viu a placa lá na calçada?
– Sim, demais! Um restaurante desse nível abrir mão do valet em respeito à ciclofaixa?
– Né? Achei ousado, não é pouca coisa.
[…]
– Vamos pegar uma empanada e um drinque enquanto esperamos?
– Vamos!
[…]
– E aí, o que achou da empanada?
– Tu é quem tem de dizer.
– Não, não. Sua opinião importa muito, preciso saber como um leigo vê as coisas também. Por isso você tem de falar primeiro, para eu não influenciar. Quer dizer, não mais do que já influencio só de estar aqui.
– Umm. Não achei, ó, aquela coisa. Confesso que esperava mais.
– É, é boa. Mas não me surpreendeu também, tamo junto. E o Lady Much?
– A gente pediu pelo “cogumelo selvagem”, mas não sei se estou sentindo.
– Nem eu. A cachaça é boa; o cacau dá adstringência; a laranja, frutado; o cogumelo, umami; o cynar, amargor. Meio tudo, meio nada. Não sei se funcionou, não.
[…]
– Acho que agora é nossa mesa.
– Eba! Foi bem rápido.
[…]
– Tu entendeu o que ela disse?
– Não, só pesquei um polvo por noventa e alguma coisa…
– Também não consegui ouvir.
– Reparou como os garçons são cheios de personalidade? E cada um diferente do outro?
– Sim! O gringo altão com sotaque sedutor, a morena de óculos com a planilha é formal e organizada, a que trouxe a empanada é toda tímida…
– E aí ficamos com a que joga cardápios, despeja os especiais do dia e sai correndo… Que azar!
– É, não podia, né?
[…]
– Viu alguma coisa interessante no cardápio?
– Ah, não sei, o que tu recomenda?
– Acho que podemos dividir uma entrada. Aí, um principal e acompanhamento para cada?
– Será? Não é muito?
– Acho que não. Tem cara de que os principais são só a proteína mesmo. Sem acompanhamentos, vamos sair com fome.
– Tá… se você diz. E o que tu viu de interessante aí?
– Essa página destacando os ingredientes e seus produtores… É uma forma inteligente de chamar atenção pra isso sem ser inconveniente, como trazer os pratos e ficar cinco minutos explicando de onde veio cada coisa. Lê quem quer, cada um dá a atenção e o tempo que quiser. É tão fácil e importante… Todo mundo fala de valorizar produtores, mas é incapaz de fazer algo bobo assim.
– E fofinho, né?
– Muito!
[…]
– Já decidiram?
– Ainda não…
– Fiquem à vontade.
– Obrigado, você poderia… Não? Parece que não.
– Haha! Ela já estava na cozinha no “ô”.
– Pelo menos não podemos dizer que o serviço é lento!
[…]
– E aí?
– Não sei, os pratos não me dizem a que vêm, não mostram criatividade, não mostram uma cara. É tudo, é nada. São combinações… sem graça. Nada me chamou a atenção particularmente.
– Eu vou querer o polvo. Só queria saber como ele é, vou pedir para a garçonete repetir com o que ele vem, mas acho que vai ser ele.
– Tá. Ei, já comeu ostras?
– Já.
– E vieiras?
– O que são vieiras?
– É o molusco que tem aquela concha da Shell, sabe?
– Sei.
– Quer experimentar?
– Pode ser.
– Podemos pegar esse combinado de ceviche, vem ostras e vieiras, o que acha?
– Acho genial.
– Fechou. E aí, acho que ficarei com o “peixe fresco na cazuela com tomate, erva-doce e oliva”. Que peixe será que é?
– Não sei.
– Será que “oliva” é azeite ou azeitona?
– Não sei.
– Bem, descobriremos. Cazuelas me trazem boas lembranças.
– O que é cazuela?
– Ah, é a panela, uma panela de barro. Coisa típica do Chile e Peru. Só que a panela acaba dando nome à comida em si, em geral se faz cozidões com carnes, vegetais, grãos; não tem muita especificação, coloca-se o que tiver na geladeira e, voilà, faz-se cazuela na cazuela.
– Como barreado…
– Exato! Como você…? Ah, é! Você foi para Curitiba, pegou o trenzinho e tal, tá certo.
– Uhum.
– Tá, e de acompanhamento?
– Então, eu vou ter de pedir esse “repolho como você nunca comeu”.
– Ficou curioso, é?
– Sim… como será que é?
– Eu não tenho como saber, nunca comi.
– Mas tu, como alguém da área, chutaria ser como?
– Tô importante agora.
– Quero teu chute.
– Olha, o que posso dizer é que repolho tostado está na moda.
– Como é um repolho tostado?
– Você marina ele em alguma salmoura ácida para pré-cozinhar, amolecer e temperar, seca bem os lados com papel toalha, joga na chapa pelando para tostar.
– Mas picado?
– Não… umm… é tipo… uma fatia.
– Tipo couve?
– Não, corta um oitavo, tem de manter o talo, ele segura as folhas.
– Oi…?
– Corta como… como o quê? Ah! Sim, já sei, como um panetone! Faz triângulos cortando verticalmente, tira uma fatia como um panetone. E aí tosta as laterais.
– Ah! Tendi. Será que vai ser assim?
– Não pode ser assim, assim eu já comi.
[…]
– Gente, que pão maravilhoso. O azeite também é bom, orgânico do Chile. Não é um brasuca, mas…
– Tu falou antes de mim!
– Ah, verdade! Ops, desculpa!
[…]
– Olha aí as ostras.
– Oba. Vai, tu primeiro.
– Umm. Gostou?
– Sim! A ostra tem gosto de mar, eu gosto. Mas a vieira não tem muito gosto, né?
– Exato, a ostra está maravilhosa, bem fresca e, como deve ser, com sabor de mar, um mar limpo, agradável. Vieiras não tem muito gosto mesmo, a gente come só o músculo, aí, como limpa, fica uma proteína bem delicada, macia e suave.
– Arrasou.
– Eu não consigo parar de comer esse pão!
– Nem eu, bem que podiam trazer mais, né?
[…]
– Putz, será que ouviram a gente?
– Acho que não. Mas trouxeram só pão, podiam trazer mais manteiga e azeite, né? Pro casal ali, trouxeram mais manteiga.
[…]
– O que tu achou do lugar?
– Agora, eu falo primeiro, né? Gostei não.
– Não?
– Pelo preço, as mesas são muito pequenas e coladas umas nas outras. Achei muito escuro também. E, não sei, esteticamente, tem uma cara de inacabado, de temporário, sabe? Meio bricolagem, estrado de cama reaproveitado, ventilador com cara de que vai cair na nossa cabeça, as vigas pretas, um monte de tubo branco, a madeira, sei lá, meio confuso, informações desconexas.
– Ah, eu adorei. Essa trepadeira, o forro meio praia, a tubulação exposta, o cimento queimado, almofadinha, a divisória de vidro maravilhosa, inclusive quero tirar foto. Achei despojado e aconchegante.
– Bem, você quem é da arquitetura aqui.
[…]
– Oba, a comida chegou.
– Aaaaah! O repolho é como tu falou!
– Aaaaah!
– A propaganda está errada para ti, tu já comeu antes.
– Verdade, eu já comi.
– Imagina se os cardápios fossem como no Harry Potter, o teu diria “repolho como tu já viu”.
– Meu deus, você é um gênio! Imagina? Seria incrível! Tecnologia não falta, é só usar tablet. O problema é o trabalho.
– E, claro, não se restringiria a isso, poderia criar uma forma completamente diferente de apresentar o restaurante e a comida.
– Sim! Vídeos, interatividade, personalização! Seria incrível. Já deve ter restaurante que faz, certeza… só nunca ouvi falar.
[…]
– Mas o repolho necessariamente tem de ser roxo?
– Não, primeira vez que vejo fazerem com o roxo… Que mais que cor, tem textura e sabor diferente. Não acho que seja melhor para tostar que o branco.
– Prova.
– Urgh, não mesmo. Não funciona bem como com o branco, o roxo é mais macio. E esse está bem sem graça, não devem ter marinado, parece que nem sal colocaram. Também não tosta igual o branco… Ou, pensando bem, talvez toste, mas como é escuro, enxergamos menos a crosta e isso diminui nossa percepção do sabor de tostado.
– Então também nunca comeu repolho assim!
– Não mesmo. Ponto para o Arturito.
– Ponto para o Arturito!
[…]
– Eu sei que tu não pode, mas quer experimentar?
– Quero sim. Uma pontinha não vai me matar.
– Umm, a textura está ótima, muito macio, nada borrachudo. O sabor também, delicioso, bem aromático. Meu deus, muito bom! Ops, falei antes de novo! O que você achou?
– Eu queria que tivesse mais gosto de polvo, de mar. Só tem gosto de temperos.
– É, não tem sabor de polvo, por isso gostei tanto. Eu não gosto do sabor de polvo.
– Não?
– Não. Talvez por eu ser alérgico, associo com coceira, taquicardia, suor e glote fechando. Meu inconsciente não vai ter uma boa impressão desse sabor.
– Então está explicado.
– Polvo tem de ter gosto de polvo.
– Mas tu gostou.
– Adorei, mas eu não gosto de polvo.
– É… E teu peixe?
– Experimenta.
– Umm. Eu gostei.
– Eu também, está fresco, úmido, bem cozido.
– E o arroz cremoso?
– Péssimo. Uma papinha.
– Mesmo?
– Mesmo. Entendo que era a proposta, sobrecozinhar o arroz, soltar o amido, engrossar o caldo, enfatizar a cremosidade. É intencional. Mas para mim isso aqui está uma papinha com sabor de casca de limão siciliano. Só limão, limão. Papinha sabor produto de limpeza.
– Que pena.
– Ponto a menos pro Arturito.

 

[…]
– Interessou por alguma sobremesa?
– Não sei, as que vi passar não me atraíram muito. Tu quer alguma?
– Nah… “Profiterole com baunilha e chocolate”, “panqueca de doce de leite e baunilha”, “mousse de chocolate”, “sorvete de baunilha, chocolate ou doce de leite”? Que horror, não tô acreditando. Entendo que a proposta seja servir o básico bem feito, é absolutamente condizente com o restaurante, tanto fazer comida sem rebuscar, quanto não incentivar o consumo de calorias vazias por mero hedonismo. Mas, exatamente por isso, deveriam oferecer doces baseados em frutas, verduras, ervas, especiarias. Não é difícil fugir do açúcar. Aqui só tem doce de leite, chocolate e baunilha. Sério, só tem esses três. Nem um sorbêzinho. E olha as duas aqui do lado, estão remando para chegar à metade da mousse, já faz uns minutos que tão jogando uma para a outra. Parecem ter odiado.
– É. Aquele casal ali também parecia bem infeliz com a panqueca. Pulamos a sobremesa?
– Sim, podemos ir comer doce em outro lugar, topa?
– Topo.
– Vou pedir a conta.
[…]
– Obrigada, fiquem com Deus, meus queridos.
– Obrigado! Amém, tu também.
[…]
– Menino, o que era aquela moça?
– Siiiim! Ela desejou que ficássemos com Deus e eu nem pensei “Deus não existe”!
– Deu vontade de abraçar e levar para casa.
– Louco, né? Ela tem dom. Fazer completos desconhecidos se sentirem íntimos assim? É muito fácil cair numa intimidade constrangedora, é preciso naturalidade, tem de ser real. Ela é boa. Pena que não atendeu nossa mesa. Teria sido um outro jantar. Literalmente outro.
– Que pena.
[…]
– E aí, o que achou do restaurante?
– Confesso que fiquei confuso com a formalidade. Achei que era mais casual, seria mais a cara da Paola.
– Concordo plenamente. Eu também esperava menos formal. E mais barato.
– Bem, eu não como em lugares chiques, não sei avaliar.
– Em São Paulo, existem excelentes degustações de cinco ou sete pratos por esses duzentos por pessoa que pagamos sem sobremesa. Eu nunca trocaria um degustação por isso, não mesmo.
– É… talvez porque ela pague bem fornecedores e funcionários?
– Importantíssimo, justíssimo. Ainda assim precisa oferecer comida que justifique o preço. Caso contrário, seria melhor doar quatrocentos reais direto para alguma ONG que faça algo pelos trabalhadores, pelos agricultores, pelo meio ambiente, entende?
– Sim, sim.
– E a comida?
– Achei boa, mas queria um polvo com gosto de polvo. Também acho que estava com uma expectativa grande demais por ser da Paola. Esperava algo “uaaau”!
– É, quer ela queira ou não, é preciso lidar com a enorme expectativa. Seu cliente pode ser apenas um vizinho rico de Pinheiros que come aqui toda semana, mas agora boa parte do público são, sei lá, turistas do Amapá, que por acaso vieram a São Paulo na lua-de-mel, nunca entraram num restaurante refinado antes, gastam duzentos reais na compra do mês inteiro, mas virão aqui por conta da Paola. É sério, entende a responsabilidade? Ela precisa estar preparada para atender essa gente. E talvez ela devesse considerar aparecer no salão e dar um pouco de atenção às pessoas. É um saco, perde tempo, mas quem vem ao Arturito quer ver a Paola, quer comer comida da principal jurada, personalidade, expoente da gastronomia brasileira, quer ser espantado e maravilhado. É triste que seja tão restrito, mas gastronomia na mentalidade do brasileiro médio se resume a Masterchef. É a única referência, é a única coisa que as pessoas falam quando o assunto é gastronomia. A Paola é a chefe de cozinha mais famosa e influente dentro do país, muito mais que o Atala…
– Quem é Atala?
– Exatamente! Entendo que o Arturito veio antes do MasterChef, mas ir pro MasterChef muda tudo. Ela pode alegar que não criou nem incentivou qualquer expectativa em relação ao Arturito, que não o vende como qualquer coisa que não seja. Absolutamente verdade. Talvez ela queira justamente enfatizar que alta gastronomia não é um bicho de sete cabeças, que a relação com os produtores e o meio ambiente é mais importante que uma comida diferentona que explode cabeças. É uma mensagem válida, okay. Mas ela teria de garantir que todos que venham aqui entendam isso, que fiquem encantados com essa mensagem, que saiam sentindo que suas expectativas foram correspondidas, não acha?
– É… mas como ela faria isso?
– Não sei… ou melhor, sabe que a sua ideia do cardápio interativo seria perfeito para criar isso? Imagina, a pessoa clica no prato, aparece um vídeo explicando porque o prato é especial, mostrando o pescador, o quão trabalhoso é ter vieiras frescas aqui? Pronto, você conquistou o cliente, justificou o preço, transmitiu sua mensagem. Nem precisa mais servir a comida. Transformaria o restaurante em uma aula, uma visita a um museu tipo o da PUCRS, de preferência que trouxesse impacto na vida cotidiana da pessoa, que ela saísse decidida a ir todo sábado de manhã na feira orgânica, sabe? Mas bem menos que isso, o serviço tem de ser atencioso, explicar os especiais do dia de forma clara, não pressupor que as pessoas sabem o que é tal coisa. Trazer manteiga, dar amuse bouche e docinho de lembrancinha, é fácil encantar as pessoas.
– Uhum.
– Ah, e iluminar melhor para tirar fotos.
– Talvez seja justamente para que as pessoas não fiquem no celular.
– É um posicionamento, okay. Mas postar uma foto faz parte da experiência, as pessoas vêm por isso também, talvez até tenham mais prazer em mostrar aos amigos que vieram no restaurante da Paola, do que em comer em si. É horrível que seja assim? Não acho, mas é, antes de tudo, incontornável. Há uma romantização do passado, dizem que é coisa da tecnologia. Não é verdade, na virada para o século vinte, se reclamava que as pessoas chegavam num destino turístico e a primeira coisa que faziam era comprar postais para enviar aos parentes e amigos. É humano, é uma forma de sociabilizar. Perversa por criar imagens idealizadas de si mesmo? Talvez, mas não é uma questão tão simples assim.
– E o que tu acha da Paola?
– Ah, quem é da área pensa a mesma coisa que o público geral, o que é uma coisa rara, né? Normalmente é uma coisa meio Niemeyer, Paulo Coelho, Romero Britto. Os populares entre o público não são exatamente os ídolos dentro da área. Paola é mesmo um mulherão da porra, os cozinheiros a respeitam, se sentem representados. Tanto na cozinha quanto fora, ela é inteligente, coerente, bem intencionada. E faz muita coisa fora da cozinha, no ativismo, no engajamento.
– Mas se “vendeu”…
– Ela diz, e eu acredito, que aceitou participar do MasterChef porque queria levar as ideias de uma alimentação melhor para a tevê aberta. Ela tem um objetivo maior. Não acho que ela consiga fazer isso no programa, porque, por exemplo, não se pode falar de fornecedor e qualidade de insumo no programa. Tudo vem dos patrocinadores, que tão pagando pela porra toda, alguém sempre tem de pagar a conta no fim do dia, então tem de fingir viver num mundo onírico, abafar as discussões sobre o assunto. Mas ao menos a Paola não se vende para fazer propagandas de porcaria como outros. Ela tem princípios.
– Mas e qual vai ser a moral da crítica?
– Não sei ainda… sempre levo um tempo para digerir.
– Mas no que tu está pensando agora?
– Que se as melhores coisas do Arturito são a empanada e o pão, talvez devesse ser apenas uma padaria.
– Que malvado!
– Não, nunca. Há nada de menor em ser uma excelente padeira.

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