Oteque

O restaurante Oteque comemorou o primeiro aniversário há duas semanas, mas Alberto Landgraf, seu chefe de cozinha, é nenhum um novato. Ele começou na profissão quando foi para Londres estudar inglês e se tornou um dos principais cozinheiros do Brasil ao assumir o Epice em 2011. O restaurante paulistano recebeu diversos prêmios desde a abertura, incluindo uma estrela na primeira edição brasileira do Guia Michelin em 2015. Porém, uma série de problemas pessoais e a insatisfação com as limitações do restaurante fez com que Landgraf anunciasse sua saída do Epice no começo de 2016. Dois anos depois, ele reapareceu no Rio de Janeiro com o Oteque: o rascunho passado a limpo.

Pão. Sem ter medo de fugir da moda (trigo forte, fermentação natural, acidez, casca grossa, alvéolos grandes), o Oteque relembra que há nada de menor em servir um excelente pão de cevada macio, cheiroso e fresco ao lado de um generoso cubo de boa manteiga. Pão macio, aliás, está prestes a se tornar a nova moda lá fora.

Primeiro. Na ausência de amuse-bouche, Landgraf mostra todas as cartas da mão já no primeiro prato: cherne, vinagrete de alga, óleo de kombu e pinole. A garoupa é delicada em sabor e textura, suas companhias a reverenciam com elegância, harmonia e suavidade. Apenas três elementos, muitas camadas de sabor: óleo amanteigado, vinagrete ácido, frutado e herbáceo (riquíssimo, um caldo de vegetais fermentado?, há também uma pungência que me remete a tucupi), umami da alga, crocância, terrosidade e tostado do pinole. Nível? Prato-assinatura de um três estrelas. Expressa identidade sem deixar de ser universal e atemporal. Mesmo sem os 3 gramas complementares de caviar Giaveri Ossetra (me doeu rejeitar, tenho certeza de que valeria os R$95, mas era fim de mês… terei de voltar) é complexo e objetivo, inteligente e tocante.

Segundo. Se o cânone manda servir ostras primeiro, Oteque acerta em cheio ao não respeitá-lo: não aquele peixe, não essa ostra. Cozida no vapor, ela vem com vinagrete de pimenta-de-cheiro e óleo de salsinha. É a primeira vez que eu como uma ostra que não está fria nem quente: morna. Incrível como a temperatura muda tudo, sou pego de surpresa, estranho e desgosto da sensação alienígena, sou imediatamente transportado a uma velha e enterrada lembrança: o primeiro beijo. Talvez também precise ser ressignificado com a prática e a maturidade? A pimenta-de-cheiro crua amarra ligeiramente a boca, seu sabor e o herbáceo da salsa sobrepõem a ostra, que tem sabor de menos. Como o Oteque mantém suas ostras em um aquário no salão, me surgem dúvidas: colocar em aquário não dilui o “suco” marinho da ostra em água insossa? Compensa trocar sabor por frescor? E se se decide fazer essa troca, faz sentido cozinhar? Minha hipótese: ostra não é lagosta.

Terceiro. Os aromas do óleo de cogumelo usado na finalização volatilizam ao entrar em contato com o calor da comida e chegam à mesa antes do prato sair da cozinha. É um abre-alas, um índice peirciano, um signo fisicamente relacionado ao objeto. Também significa que o exaustor não deixa uma molécula escapar dos fogões, fornos e shichirin, mas não puxa tão forte na mesa de finalização. É perfeito. Nós não querermos sair cheirando a churrasco, eles não querem vento esfriando e atrapalhando a montagem dos pratos. Não sei se o exaustor faz parte dos equipamentos de ponta que o restaurante ganhou da Electrolux, mas a parceria é um belo exemplo de como um restaurante pode se aliar a grandes empresas sem vender a alma. É possível.

Previsivelmente, o prato de lâminas, vinagrete, maionese e farofa de cogumelos com castanha e batata baroa assada na manteiga é uma surra de umami, preenche a boca como uma colherada de glutamato – aliás, alguns fisiologistas sugerem que GMS também ativa receptores somatossensoriais, tendo, portanto, literalmente uma dimensão tátil, mas é apenas uma suspeita ainda. A mandioquinha, porém, me surpreende com sabores e textura indescritíveis, incomparáveis com qualquer outra coisa que eu tenha comido. Então é isso que acontece com mandioquinha quando confitada em manteiga? Aposto que até uma pedra feita assim ficaria boa.

Outro detalhe é que lâminas de cogumelos acabaram de pipocar em pratos de cozinheiros nos EUA, Alemanha, Dinamarca, França, sendo um indício de que Alberto Landgraf, independente de se por sintonia ou referência, participa da vanguarda mundial. Aliás, come quieto, porque embora seja pouco conhecido no Brasil, mesmo entre quem é da área, é um dos chefes brasileiros que mais tem contatos, amigos e admiradores nos círculos gastronômicos internacionais – algo que o ajudará muito na lista dos World’s 50 Best. Tenho curiosidade em saber o porquê, não há de ser apenas o bom inglês.

Quarto. Não posso comer a famosa cavaquinha com maionese de peixe, então o sutil Leonardo Silveira se aproxima e pergunta num sussurro: “alguma restrição a foie gras?”. Eu arrepio: é assim que se substitui uma restrição. Igualmente icônico, o brioche com foie gras acompanha Landgraf desde o Epice. Essa noite, vem com pó de zimbro, shimeji tostado e vinagrete de cogumelo. A acidez para contrabalancear a untuosidade está muito mais forte do que qualquer livro recomendaria; ainda bem. Mas é também sinal de que, embora a mantenha sua auto-declarada assinatura (reparem que todos os primeiros pratos tinham vinagrete e os próximos continuarão oferecendo acidez), talvez Landgraf fosse ainda mais ácido no Epice. Seria a serenidade da maturidade? Sem juízo de valor, pois rebeldia também é bem-vinda, mas sem pé de porco, o Oteque é mais centrado e confiante.

Quinto. Outro prato-assinatura que remonta ao Epice, o ouriço-do-mar com farofa flocada de milho e cebola assada é um tratado sobre texturas. A cebola desmancha em doçura na língua, como se todas as suas fibras tivessem sido digeridas em monossacarídeos. Se usarem frutano exohidrolases para quebrar a inulina em frutose e glicose, o resultado seria algo assim? Aí sim seria gastronomia molecular que vale a pena. O milho flocado é duro, o ouriço tem cremosidade granulosa, a espuma tem um corpo impressionante para uma espuma e se deixa dominar pelo sabor de tomilho. É uma bela combinação. Falaram-me que visualmente parece vômito, concordei. Um vômito esquisito, harmônico e delicioso.

Sexto. Para o pargo com tucupi e alho-poró, o Oteque aproveita o peixe inteiro fazendo fumet com as carcaças e pincelando sua redução (existe demi-glace de peixe?) no filé, especialmente na pele, enquanto grelha. Os açúcares dos vegetais do fumet caramelizam na superfície dando à pele crocância e dulçor de nuances únicas. A doçura é quebrada pela acidez do tucupi; o alho poró oferece um herbáceo delicado que não sobrepõe o peixe. É extraordinário como nuances e riquezas que normalmente passam despercebidas ou ficam soterradas se tornam tão perceptíveis e distintas no Oteque. Landgraf inverte a lógica habitual: em vez de elevar a potência dos pratos com ingredientes pesados ou gerar complexidade misturando dezenas de elementos, ele aguça nossa sensibilidade para o que é belo e simples.

Sétimo. Se fruto do mar em churrascaria é cilada, a carne vermelha no marítimo Oteque é sempre extraordinária – palavras como Wagyu, bluefin, magret, carré, marmorização, maturação (feita ali na cozinha de linha, vemos as peças penduradas na geladeira com porta de vidro) pululam nos cardápios diários. O suculento e macio carré de cordeiro segue a estratégia do pargo, o caldo de músculo de cordeiro é reduzido em demi-glace, adoçado com melado e pincelado na carne para dar sabor e brilho. A acidez landgrafiana está na conserva de chalota e no creme de castanha de caju crua com limonada, ambos de sabores complexos e sensações-bucais viciantes. A berinjela glaceada em mel tem a fina casca crocante que estilhaça e desmancha na boca feito uma folha de caramelo e interior cremoso mais aveludado que qualquer purê de berinjela jamais concebido. Absolutamente genial, como isso é sequer possível? Como?

Sobremesa. O pêssego com creme inglês, leite seco e cúrcuma mantém a identidade da casa: objetividade, delicadeza e complexidade. Eu sou suspeito, qualquer sobremesa que não se baseie em chocolate e frutas vermelhas já me ganha, porém, quão extraordinário é fazer algo sutil como um pêssego fresco ser protagonista de um prato sem pecar por entregar pouco? Também na sobremesa, há inversão: em vez de soterrar o sabor do pêssego em açúcar e especiarias para elevar o prato, o prato se abaixa numa mesura e a fruta emerge à superfície. Não é apenas colocar uma fruta no prato e pronto – como alguns restaurantes têm feito -, há trabalho aqui, há combinações de sabores e texturas, há inteligência.

Em tempos de comfort food e receitas da vovó, Oteque tem a coragem de ser chique sem pudor, sem desculpas, sem concessões. O refinamento é expresso em todos os detalhes da comida, do atendimento e do ambiente. Em seu conjunto, eles são muito mais que a mera soma. Mesas redondas espaçosas, pincel de pintura à guisa de bruxinha, taças de 100 dólares e meros 100 gramas, caixa de madeira nobre para recolher talheres usados e, o que torna tudo verdadeiramente chique: sem afetação. É diferente quando as taças não estão ali porque são caras, estão ali porque são extraordinárias, porque efetivamente tornam o vinho e o jantar melhores – não faltam experimentos de Charles Spence para provar isso (curiosidade: Landgraf publicou, com outros autores e Spence, um artigo na Food Quality and Preference em 2015).

Chiques também, são a naturalidade, o conhecimento e o pertencimento com que todos se portam na cozinha e no salão. Landgraf escolheu sua enxuta equipe a dedo. O sub-chefe Nilson Chaves tem três anos de Le Bernardin no currículo – sendo que bastaria um ano numa cozinha assim para voltar com ambições de chefiar seu próprio restaurante multimilionário. Os pupilos Igor Dinau e Laís Aoki, ambos vindos do Epice, são presenças fortes na cozinha e no salão. O sommelier Leonardo Silveira parece ter treinado até o manobrista para ser capaz de segurar uma taça com propriedade e discorrer sobre a região, notas e processo de fabricação dos vinhos da harmonização que valoriza nacionais, biodinâmicos e/ou naturais.

Quanto à cozinha, são pouquíssimos elementos e muita complexidade. A objetividade e o preciosismo refletem a disciplina rígida e o (agora domado) vício em trabalhar de seu chefe. O que é novo é a inesperada especialização em frutos do mar, que Landgraf justifica dizendo estar no Rio de Janeiro, portanto, natural que tire proveito do litoral. Mas considerando que a maioria dos ingredientes marítimos vêm do Nordeste ou do Sul, em especial peixes de alto mar trazidos do Chuí pelas mãos do distribuidor Antônio Amaral, talvez o recente surgimento de excelentes fornecedores de marinhos no país explique melhor a especialização. Landgraf, como bom cozinheiro, não começa o prato ou o restaurante pela receita, começa pelos ingredientes.

Acho importante destacar isso, a criatividade na cozinha não é apenas definir combinações e proporções de ingredientes. No Oteque, cozinhar vai muito além de transformar. Pouco se discute, pouco se ensina, mas fazer compras é fundamental em qualquer cozinha. Da dona de casa aos programas televisivos, todos tratam os insumos como comódite. Não são. Um quilo de cebola não é igual a outro quilo de cebola. Quando foi que você viu alguém especificar qualidades físicas, químicas, biológicas e sensoriais de ingredientes? Ignorar o ingrediente também é passar em branco pelo custo, algo que não pode ser dissociado. Um prato de R$10 não pode ser comparado diretamente com um de R$100, os critérios devem acompanhar os contextos.

Nesse sentido, amigos cariocas me perguntaram: o Oteque compensaria para leigos como eles? Respondi que provavelmente não. O menu degustação é rápido e leve, avança orquestradamente em intervalos precisos demais para serem coincidência. Não há mimos como amuse bouche, cesto de pães, limpador de paladar, queijo, múltiplas sobremesas, chocolates ou lembrancinha. A escalada de preço foi igualmente rápida, de R$195 na inauguração no começo de 2018 para R$345 ainda no final do mesmo ano, fazendo com que, incluindo água e serviço, sejam mais de R$400 que volatilizam luxuosamente em uma hora e cinquenta minutos. Tenho certeza de que meus amigos apreciariam a comida e inconscientemente perceberiam se tratar de algo extraordinário. Mas sem entender a complexidade objetiva, a suavidade intensa, o preciosismo humilde e a inteligência despretensiosa, vale o preço? Bem, aí depende do quanto R$400 significa para eles.

Não é por acaso então que o restaurante e seu chefe de cozinha sejam poucos conhecidos no Brasil. Mais do que não ser para qualquer um em termos financeiros e culinários, o Oteque se distingue por não ser um simulacro, ou seja, não manifestar consequências reais de uma causa fictícia, fenótipo sem genótipo, sintomas verdadeiros de uma doença inventada. Algo como se expressar amazônico sem estar ou ser do Amazonas. Não há espaço para discursos geralmente usados e abusados de memória afetiva, brasilidade, italianidade ou francesidade, molecularidade, localidade, sustentabilidade ou inventices vazias. Diferente da mania que parece tomar as cozinhas do planeta, ele não está ali pelo faz de conta, pelo teatro, pelas curtidas, jurados e inspetores.

Ao Oteque, importam as quarenta pessoas em seu salão, o mundo lá fora fica lá fora. Elitismo? Certamente. Quantas pessoas têm o privilégio de jantar nele? Pouquíssimas. E Landgraf cozinha apenas para elas. É moralmente aceitável? Aí cabem interpretações. Eu considero o restaurante muito bem-vindo, ele empurra um pouco mais os limites da excelência na gastronomia brasileira. Mesmo sem mirar prêmios e popularidade, aposto que o Oteque estreará já na cabeça da lista dos World’s 50 Best esse ano. E, eu bem que gostaria de não encerrar usando como referência um guia com o qual tenho ressalvas, especialmente a valorização excessiva da tradição, mas seus critérios e significados são símbolos universais e inequívocos do que quero expressar: o Oteque merece ser o primeiro três estrelas do Brasil.

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