Foi nenhuma surpresa que o Aizomê, restaurante no Jardim Paulistano chefiado por Telma Shiraishi, tenha sido escolhido para abrir uma filial na Casa Japão. Embaixadora da boa vontade da difusão da culinária japonesa e chefe de cozinha da residência consular do Japão no Brasil, Shiraishi é a queridinha do Consulado. Se ela fosse um homem, o gênero nunca viria à baila, verdade. Mas ela é a primeira mulher a vencer a categoria “melhor chef” nos dez anos do prêmio da revista sãopaulo, temos que falar disso, temos que começar a refeição saboreando que, na capital paulista, a pessoa mais importante de um ambiente cronicamente machista, a cozinha, de uma cultura tradicionalmente machista, a japonesa, seja uma mulher.
Na filial, o Aizomê foca em refeições mais rápidas e baratas que as da matriz. O setto, um almoço executivo à japonesa, é um combinado de uma proteína (peixe, porco empanado, vegetais com tofu e shitake, algum especial do dia, sushis ou sashimis), arroz branco, conservas, sopa de missô, salada e acompanhamentos do dia. No setto de yakizakana (peixe grelhado), a anchova tem a textura da carne peculiar, ao mesmo tempo fibrosa e cremosa, e a pele crocante, salgadinha e saborosa. Os vegetais com tofu e cogumelos têm frescor, textura e sabor clássicos japoneses. O tonkatsu (porco empanado) chega com casquinha crocante, carne macia e suculenta, mas falha no sabor, fica dependente do molho.
Apesar do setto ser composto por vários elementos simples, nada está sozinho, nada destoa. As saladas têm molhos leves variados, em geral com um aromático toque de óleo de gergelim torrado. O bifum (macarrão de arroz) geladinho, acididinho e adocicado é maravilhoso. A salada de vagem com shoyo é um clássico que eu gosto demais para avaliar objetivamente. O arroz tem um sabor de armário que pode vir do armazenamento inadequado dos grãos ou da água, que em São Paulo pode ter sabor ruim mesmo depois de filtrada. Um dia, as conservas estavam sem acidez e com off flavors (sabores considerados defeitos). Noutro dia, estavam potentes e límpidas. Elas terem origens variadas, algumas feitas pela casa, outras compradas de fornecedores diferentes, explica a variação, mas não justifica servir as ruins.
A semelhança dos sabores do Aizomê com os sabores da comida no Japão não substitui qualidade, nem define valor, mas impressiona. Diferente do que parece ser o senso comum, não se consegue essa autenticidade imitando receitas e importando ingredientes. Por quê? Porque a comida no Japão não é feita com industrializados. Peguemos a sopa de missô (pasta fermentada de arroz e soja), a do Aizomê tem exatamente o mesmo sabor dos missoshiru que se toma no Japão (com exceção da do meu queridinho Sei). A semelhança vem do ingrediente: o Aizomê usa o missô feito por Marisa Ono, uma mulher incrível e difícil de definir. Pesquisadora, cozinheira, professora, inventora… arriscaria descrever como professora pardal gastronômica, no melhor sentido possível.
Fora os ingredientes, há detalhes no ambiente que conferem autenticidade, em especial o silêncio. Mais do que o barulho afetar o humor e o humor afetar a percepção da comida, os sons alteram as percepções gustativa, olfativas e somatossensoriais. Como assim? Assim: o barulho num avião diminui a intensidade percebida dos gostos em até 30%, exceto do umami, que aumenta. Mais? Ouvir uma música “cremosa” (a correlação foi validada em um experimento independente) faz um chocolate ser percebido como mais doce e cremoso do que se comido ouvindo uma “áspera”. Minha hipótese maluca é que o silêncio seja um dos principais ingredientes da culinária japonesa, um dos motivos pelo quais a comida lá parece tão diferente para nós ocidentais.
De volta ao Aizomê, o udon (macarrão grosso de trigo em caldo) encanta. A textura é incrível, firme e gomosa de uma forma deliciosa e significativamente distinta das texturas do lámen e das massas italianas. Os sushis são tradicionais e tecnicamente impecáveis. O molho de soja não é artesanal como o missô, mas o importado usado pelo Aizomê é diferente dos shoyos normalmente encontrados por aqui, é mais umami que salgado e dominado pelo aroma de fermento. Se falta alguma coisa, é o impossível: conseguir wasabi in natura para ralar na pele de tubarão sob demanda. Não custa sonhar. Para terminar de saborear a refeição, não há sorte maior que a sobremesa do dia ser pudim de yuzu. Esperarei ansioso pelo próximo inverno, época de colheita, para poder comer de novo.