Eu tinha desistido de ir à exposição. A fila, o preço, a multidão se apertando para tirar uma selfie com o Abapuru e postar com a legenda de “Monalisa do Brasil” me fizeram questionar a validade e vontade da visita. Também esse nome, por que intitularam a exposição Tarsila Popular? O que há de popular numa filha da elite paulista cafeicultora, antes escravista, depois oligárquica do café com leite? O que há de popular em sua educação em Barcelona e Paris? As suas pinturas com favelas higienizadas e operários sem identidade? O retrato do seio flagelado que talvez tenha lhe dado de mamar e cujo título reduz a retratada à cor da sua pele? O que pode haver de popular em Amaral, o que pode ela saber sobre populares, como pode ela falar por eles? Para piorar, um amigo apontou, o que há de popular nessa exposição em que a maioria dos negros e mulatos presentes estão de uniforme e crachá, não adesivo? O que há de popular num ingresso de R$40? Mas, idas e vindas da vida, cá estava eu no MASP. E a exposição me surpreende, me arrebata, me soca na cara.
Diferente de alguns museus desse mundo, como o Isabella Gardner (que foi criado para fornecer nenhuma informação sobre as obras, inclusive de que sequer são obras, você pode muito bem tropeçar numa e nunca descobrir ser parte do acervo) e parecido com outros como os do Smithsonian (meus favoritos justamente pela vontade didática), Tarsila Popular pega na mão e nos guia. Surpreende que os textos sejam enormes e que as pessoas leiam. Apertam os olhos, reclamam dos óculos, tiram foto para aproximar na tela… e leem. Há curiosidade, há vontade e há informações interessantes, precisas e acessíveis. Há o momento em que se olha o quadro e o entende. Aprende seu contexto, seus atributos, seu significado. Apreende porque ele é o que é. Temos o inverso do elitismo hermético vergonhoso que prega que a arte não pode nem deve ser explicada. Consideram estética algo subjetivo, algo que se tem ou não tem, não algo que se aprende e desenvolve. Batem o olho e definem se gostam ou desgostam, sendo que gostar do que é refinado é ter bom gosto e gostar do que é grosseiro é ter mau gosto. Não é assim, a ciência prova não ser assim, exposição e referências condicionam aceitação.
Claro que não falta quem, diante do Abaporu, solte um “ah, eu conheço esse aí, é aquele bicho lá, como era mesmo?” ou, diante d’A Negra, murmure escandalizado, “que horror!”, como se a deformação estética do peito fosse o maior problema da escravas. Mas o esforço informativo dos curadores, Fernando Oliva e Adriano Pedrosa, e o interesse generalizado do público reina na exposição. Já aceito como incontornável aquela coisa de tirar fotos sem dedicar um segundo para contemplar, é parte do fetiche universal por famosidade, que tanto define o valor do objeto fotografado, quanto determina a motivação do fotógrafo. Fetiche esse que provavelmente também nos impede de perceber que Abaporu (1928) e Antropofagia (1929) são gestos ensaiados, engessados e inexpressivos. Aprendemos na exposição que Abaporu surgiu da vontade de impressionar Oswald de Andrade, Antropofagia surgiu para sintetizar sua obra [até aquele momento], para ser obra-prima. No entanto, os significados de ambos, assim como seus nomes, são calculados, não emanam das pinturas, têm a firmeza de um post-it grudado à tela. Frutos da ambição racional, ficam enfraquecidos ao lado de obras mais íntimas e expressivas da pintora.
Figura só (1930) é de força infinita. Como explica um dos seis comentadores convidados para escrever sobre as obras, a família de Amaral vai à falência com a crise de 1929, perde representatividade política com a Revolução de 1930, Oswald de Andrade troca Amaral por outra mulher e a pintora ainda perde seu cargo na Pinacoteca de São Paulo. Esse é o único quadro que ela pintou nesse ano. A figura é um totem monolítico, uma lágrima, um botão de flor que se fecha. O verde e o azul são sóbrios, formais, melancólicos. Os cabelos, infinitos, esvoaçam para fora da tela como se não fossem matéria. E a vegetação, que faz ali? O quadro não seria mais dramático sem ela ali? A figura não deveria estar sozinha, como diz o nome? Provavelmente. Mas lá estão as plantas. Acredito serem importantes para nos remeter imediatamente à Amaral. Nelas estão sua autenticidade, sua assinatura, sua criação, sua obra. E se essas figuras surrealistas são ícone de sua obra, nos remetem a sua obra, será que não representam literalmente sua obra? Só lhe resta sua obra, só lhe resta a pintura. Significa que ela não está sozinha então? Não, ela continua sozinha, porque sua obra é sua extensão, sua obra é parte dela.
A posteridade divide a pintura de Amaral em três fases: a pau-brasil, a antropofágica e a social. Na primeira, pintou paisagens urbanas e, como as chama, “caipiras”. É curioso que Amaral pintasse paisagens urbanas sem figuras humanas enquanto que as interioranas tinham pessoas, em geral negros. Talvez seus círculos urbanos brancos não a interessasse como a interessavam os negros do campo. Talvez pela vontade de se vender nos salões parisienses, expressa na ambição de ser “a pintora do Brasil” e na contratação dos mais famosos estilista e moldureiro da cidade para embalar a ela e a seus quadros para apresentar à sociedade local. Ela, por sua vez, embala o Brasil com seu esquematismo e balanceamento gráfico, compondo imagens de um Brasil organizado, limpo e colorido, como o Velho Mundo jamais imaginaria. Amaral explica numa carta que os parisienses se interessavam por seus quadros justamente por mostrarem coqueiros, negros, favelas, cores intensas. “Não pensem que essa tendência brasileira é malvista aqui”, escreve, “Paris está farta de arte parisiense”.
No ano seguinte à inflexão de 1930, Amaral vende quadros de sua coleção para viajar à URSS com seu novo marido (terceiro dos quatro que teve). Para conseguir dinheiro para voltar, arranja emprego na construção civil em Paris. De volta, ela participa de grupos políticos de esquerda e é presa pela polícia getulista. Nesse contexto, abandona a fase antropofágica e entra na fase social. Em 1933, pinta Operários e Segunda classe. Novamente, a famosidade preferiu a racionalidade ao expressionismo, porque perto de Segunda classe, Operários é panfleto publicitário. A ordem, a distribuição, as intenções… é uma denúncia ou uma reprodução da massificação? Tanto que os comentadores, na ânsia de inventar justificativas para a grandiosidade do quadro, nunca se decidem se destacam a indiferenciação ou a riqueza de detalhes de cada rosto, cuja diversidade de etnias é tão calculada que soa falsa como naquelas propagandas com uma criança negra, morena, loira, ruiva e asiática. Por sua vez, Segunda classe é expressão, individualização, personalização. É menos política, mais povo. Operários é discurso, Segunda classe é narrativa.
Assim, o título da exposição não quer dizer que Amaral é popular. Quer dizer que nosso olhar deveria se tornar popular, ver menos Abaporu e Operários, mais Figura só e Segunda classe. Enxergar menos a técnica europeia e mais os objetos: o negro, o caipira, o operário, o Carnaval. Não pense que essa tendência é malvista aqui… São Paulo também está farta de arte parisiense. A exposição, então, é o encontro de [uma ínfima e elitizada parte dos] brasileiros com o que há de brasileiro em Amaral. Quer ressignificar os quadros que reconhecemos dos livros escolares – resultado de uma das estratégias do bem-sucedido esforço de Tarsilinha do Amaral em divulgar e valorizar a obra de sua tia-avó, a política de não cobrar royalties para reproduções em materiais didáticos. Esses livros, como boa parte da crítica brasileira, enfatizaram “suas filiações e genealogias francesas, possivelmente em busca da legitimação internacional da artista, mas assim marginalizando os temas, os personagens e os motivos populares que ela construiu”, escrevem os curadores. Sem deixar de reconhecer as influências europeias, a exposição quer conversar sobre o que há de Amaral em Amaral, descolonizar seus quadros. É um convite para que os brasileiros visitem a Monalisa no Louvre e digam ser o Abaporu de lá.
Obs. Referi-me a Tarsila do Amaral pelo sobrenome e isso causou estranhamento porque temos mania (cientificamente comprovada) de usar o primeiro nome para mulheres e o sobrenome para os homens. É uma mania recorrente demais para ser inofensiva.