As fatias fininhas de peixe chegam e eu me sinto trapaceado. Isso é um prato principal? Vou morrer de fome. Então, o cesto de pão chega. No Brasil, seria arroz, batata, massa, polenta. Aqui é pão. Vem separado, mas não é complemento, é base. Como base, o pão não é o nosso auge da branquitute insossa, adequado às manhãs, quando estamos indispostos. É pão com sabor, textura e beleza.
O peixe fresco, um “bar du Golfe de Gascogne”, provavelmente um Dicentrarchus, é suavemente marítimo. O glacê de cogumelo tem sabor diferente do que conhecemos como cogumelo, é algo selvagem, como lamber um musgo de uma árvore numa floresta. Lembra-me os shoyos japoneses artesanais, talvez pela cor e pelo umami. Há estranhamento: isso é comida? O estranhamento não é algo simples, oscila livremente entre o asco e o prazer.
Meu acompanhamento chega depois, uma couve-flor majestosa, imponente, linda e saborosa. Embora visualmente íntegra e firme, é molenga, cremosa, de comer de colher. Há estranhamento novamente. Eu deveria apreciar couve-flor assim? Gosto tanto do frescor, da crocância, do sabor mais verde e menos água de cozimento de brócolis. Mas quantas vezes meu prato favorito foi justamente tomates, abobrinhas ou berinjelas que desmancham na boca? Por que com eles tudo bem perder crocância, com couve-flor não?
De sobremesa, sorbet de laranja navelina e mousse de mexerica. O sorvete é um choque, muito ácido e amargo. “Moça, esqueceram o açúcar”, penso. Passado o susto, algo muda em mim, viro masoquista: Quero mais. Bate mais. Mais forte! Aaahh! Por baixo, a mousse é um afago bem lácteo e apaziguador, mesmo sem açúcar. Aliás, sem o açúcar da confeitaria brasileira para ofuscar, podemos ver o brilho de todos os outros elementos como o sabor do creme de leite, dos ovos, da mexerica. É como sair da cidade para ver as estrelas no campo.
Uma mulher discute infinitamente ao telefone. Os problemas nunca acabam. Seu filho pequeno anda pelo restaurante e brinca com os garçons com intimidade. Talvez inspirado por ver minha laranja passar, ele pede uma também. Fico de olho para ver se fará cara feia para acidez e amargor do sorvete. Nem pisca. Está acostumado com o brilho das estrelas.