O pão vai muito bem, obrigado. Não tem particularidades comparado a outros bons integrais de longa fermentação, mas é impossível esquecê-lo. Ou parar de comer, desce mais um, por favor! Já a manteiga, tem identidade, é única. Fermentada, tem acidez e aroma puxado pro iogurte, é cremosa e volumosa, uma senhora textura. É apenas manteiga, mas emociona (sério). O @azeiteborriello tem um pingo de maduro, ainda assim oferece sabor verde, untuosidade que abraça e picância intensa. Como esperado, está um pouco oxidado. Estamos na véspera da colheita, o pior momento do ano para os azeites, pois o produzido ano passado envelheceu e o desse ano ainda está nas oliveiras.
A primeira entrada do Menu do mercado no @TujuRestaurante em São Paulo é de tomates que desmancham na boca como se fossem purê. Incríveis. O sabor de tomate está aqui, é o primeiro a aparecer, pouco antes da terrosidade complexa e aromática do alho negro tomar conta. Em seguida, a acidez do tucupi limpa o palato e abre espaço para os seus persistentes aromas frutados e fermentados, cuja complexidade me lembra boa cerveja e bom vinho. Existiria elogio melhor? A compota de kinkan e os trevos enfeitam e explodem ao acaso em pungência e aromas cítricos.
O @gustavotejerina, vegetariano estrito que me fez companhia, recebe então um duo de brócolis e couve-flor que, surpresa, está frio, é uma salada. O brócolis é defumadíssimo, a couve-flor é acidinha, ambos crocantes e bem integrados pelo inventivo missô de castanha-do-Brasil. Eu, onívoro, recebo o caramujo-do-mar e sou instruído a mastigá-lo sem pressa, prestando atenção nas mudanças. Limão, água do mar, borracha?, serragem? e pimenta me vêm à cabeça. Para acompanhar algo borrachudo como o caramujo, arroz. Ele absorve 1,3 vezes a sua massa do saboroso caldo marítimo e sua textura al dente oferece permanência: escolha perfeita.
O peixe do dia é um cherne suave, fresco, suculento, macio e cozido à perfeição. Vem com creme de mandioquinha e coco, espuma de curry amarelo, vinagrete de banana-da-terra, castanha de caju, pimenta de cheiro e broto de amaranto. Eu normalmente fico ressabiado com tantos elementos em um prato, mas aqui, todos aparecem sem pancadaria. Uma lufada de coco, outra de mandioquinha, vem a acidez deliciosa do vinagrete, a leve doçura de uma banana-da-terra inusitadamente macia, o crocante do caju e um senhor curry para juntar todo mundo. Tudo de sabor limpo e harmônico.
O vegetariano estrito paralelo ao cherne são ravioli de pupunha com mandioquinha e cogumelo. O prato emana aroma parecido ao de caldo Knorr, o molho é umami e reconfortante. A pupunha, surpresa, faz a vez da massa e surpreende por fazê-la melhor que a original. Ela é crocante, presente, al dente. Vai perfeita com a cremosidade do recheio de mandioquinha. A mordida termina num ligeiro amargor aromático da espuma de yuzu, possivelmente uma exclusividade fornecida in natura pela @marisatono.
O último principal é um tecnicamente impecável filé de porco montau com glaçagem de amora. Fazem companhia queijo coalho tingido com pimenta, taioba em fitas pouco mais grossas que meus fios de cabelo e curvas lindas, sensuais e ardentes de batata amarela. Por sua vez, o último vegetariano dizem ser uma abobrinha (mas talvez berinjela?) cremosa e defumada em cima de mole negro de cupuaçu, cacau, pimenta, gengibre e deus sabe lá. O mole rouba a cena, é mega complexo, adocicado, apimentado, salgado, com algo de amendoado, outro algo de frutado… Tá, esquece, é impossível descrever moles.
Como provei os pratos onívoros lado a lado com os vegetarianos estritos, a vocação do chefe de cozinha Ivan Ralston e da equipe do Tuju para os vegetais ficou latente. Com exceção ao caramujo-do-mar, que reina absoluto em seu prato, os cursos onívoros não dão protagonismo à carne. Em principais incríveis por combinar harmônica e deliciosamente tantos elementos, as carnes parecem obrigação. É uma questão de estilo. Tecnicamente perfeitas, não excitam, apenas cumprem a exigência de ter um bicho morto no prato.
Um dos pratos do Menu da estação, que eu não comi, é wagyu glaceado em redução de melancia. Glacear em melancia é uma ideia incrível porque ela muda surpreendentemente de sabor quando manipulada, perde o frutado e o frescor, fica sóbria, “salgada”, “bege”. (Sim, por isso, rarissimamente fazem sobremesas ou sorvete de melancia: tem muita água e, se reduzir, o sabor muda completamente). Mas, por outro lado, uma glaçagem feita com demi-glace do próprio animal e uma boa crosta destacariam o sabor de carne da carne. São escolhas.
Eu pessoalmente gosto de pratos com protagonista, como tinham os pratos vegetarianos. O Tuju coloca o tomate, o duo de brócolis e couve-flor, o ravioli de pupunha, o mole (o protagonista não é a abobrinha-berinjela) em altares. Se as carnes são super-heróis num gibi dos Vingadores ou da Liga da Justiça, os vegetais estão em suas próprias revistinhas. Muito longe daquela mania besta de simular receitas onívoras com substituições vegetais. São pratos criados a partir e para esses vegetais. Com isso, o Tuju serve uma baita aula sobre como deve ser comida vegetariana. Uma baita aula.
Em relação ao serviço, o tempo entre os pratos foi perfeito. Parece besteira, mas existe sim um tempo perfeito. E ele varia de mesa a mesa, tornando difícil para a cozinha se sincronizar a todos os clientes. Estou falando disso porque fiquei com a impressão de que a cozinha estava mais atenta ao que acontecia nas mesas, às particularidades de cada cliente, do que a equipe do salão. Embora bem informados sobre comida e capazes de conquistar com infinita boa vontade, o serviço derrapou na atenção a detalhes bobos, mas importantes em um duas estrelas @MichelinGuide.
Por exemplo, um inofensivo descuido na hora de servir água com ou sem gás. Também quando perguntamos o que ia no mole a um garçom que, justiça seja feita, parecia estar em treinamento, e ele diz ter tinta de polvo. Dedo no cu e gritaria porque o mole era do Gus. Pedimos confirmação, era a versão vegetariana, sem tinta de polvo. Inofensivo, mas, de novo, esperável de um duas estrelas. Em restaurantes assim, garçons anotam as particularidades de cada pessoa: que água está tomando, se tem restrições, até extremos como o que pediu na visita passada. Sim, tudo isso para perguntar “mais água com gás?” em vez de “você está tomando água com gás ou sem?”. É super fútil. Mas lindo, não?
Assim, ao ver que queríamos dividir o prato de queijos, a @TasakiYumi fez a querida gentileza de pedir à cozinha que fizessem, excepcionalmente, um prato misto com queijos (para mim) e tofu (para o Gus). Baita preciosidade, nos conquistou de imediato. Mas, e não estou reclamando, apenas uma observação dentro do contexto geral, ela disse ter mandado os 3 queijos menos maturados por serem os mais aceitos. Com certeza os mais suaves são os preferidos em geral, mas quem ia comer parecia ser o tipo de pessoa que se interessa mais pelos queijos fáceis ou pelos difíceis?
O prato de queijos, então, vem com tofu para o Gus e os famosos @MilitãodaCanastra, Tulha da @FazendaAtalaia e avecuia da @QueijariaRima. O Gus certamente não se impressionou com o tofu, eu acho que preferiria os Coração e Mimo da Serra dos @ChristopheeZeide, embora não os conheça. Eu adorei o figo, Gus adorou a castanha, certamente alguém deve adorar a laranja. De sobremesa, panna cotta com redução de uva isabel, mirtilo, crocante de amêndoa e sorbet de cachaça. Acho panna cottas sem graça, mas essa tinha uma boa cremosidade e um bom sabor de coco, o que me faz crer ser feita com creme (como pressupõe o nome, embora sempre usem leite) de coco. O conjunto é gostoso e harmônico.
No vegetariano estrito, Gus torcia por algo que fosse mais que apenas frutas. Acho que entendo. Para quem normalmente só tem frutas e sorbet como opções de sobremesa, um bolo ou uma panqueca – é posssível fazê-los bem sem ovo e leite – acaba se tornando especial. Fica a dica, confeiteiros. Estranhamente, os sabores da lichia, redução de melão, semente de manjericão germinada, creme de coco (substituindo a onívora espuma de mel) e flor-de-mel não aparecem. A redução está suave demais, as sementes não têm rabinhos ou sabor, a flor-de-mel não exala aromas, a lichia e o creme de coco são apenas lichia e creme de coco.
O café bourbon laranja é bom, mas também não é memorável. O micro-sanduíche (macaron?) de suspiro e creme de matcha que acompanha o café tem bom sabor, bom dulçor, amarguinho gostoso, mas está suado e tem textura esquisita. Por que o colocam na geladeira? O potencial da jovem chefe confeiteira @RhaizaZanetti é evidente. Só de não usar chocolate, doce de leite e frutas vermelhas como muletas, já ganha meu coração. Mas, talvez os ingredientes e o armazenamento tenham a deixado na mão.
Enfim, no geral, dois anos atrás, o Tuju me pareceu um desfile de alta costura, pois a atenção ao conceito soou desproporcional à usabilidade, no caso, ao prazer de comer. Nessa nova visita, o restaurante se mostrou soberbo na teoria e na prática. Talvez escreva besteira, mas suponho que a diferença entre as visitas seja o surgimento do laboratório de criação. Com mais tempo, espaço e colaboração para desenvolvê-los, os pratos ficaram enfim completos.
Na essência, as mudanças são detalhes, uma masala ali, uma defumada aqui, uma fermentada lá. Técnicas que não mascaram ou preenchem um vazio; mas desenvolvem, fortalecem e complexificam os aromas; elas arredondam os sabores sem perder a alma aventureira e deslumbrada pelos ingredientes que caracteriza a casa. O resultado foi que desejei a todo instante que a comida não parasse de chegar e o almoço nunca acabasse. Foram mais de duas horas de descobertas, reflexões e uma deliciosa cobiça pela eternidade.
Deixe um comentário