Recém chegado à cidade, deixo que ele escolha o lugar. O nome já me desagrada, acho o conceito de speakeasy1 inerentemente contraditório, como uma organização anarquista ou um falar sobre o que não se fala. Não sei se alivia ou piora que, no fim, o nome tem nada a ver com o lugar, enorme fachada em frente a Les Halles, nas ruas mais movimentadas da noite em Dijon. O excesso de informação do salão todo trabalhado em tapetes, cortinas, papel de parede, sofás de veludo bordô, bibelôs e abajures é o que muitas avós devem ter como ideia de refinamento. Ele me trazer aqui quer dizer o que sobre a minha idade?

Diferente do nome, a comida mantém coerência com o salão. Chantilly, marquinha de colher, rabiscos de calda, peixe grelhado para as vovós, boeuf bourguignon para os vovôs. É curioso como a gente acha que a essência do boeuf bourguignon2 são as horas de cocção, o vinho, a cenoura, a cebola e o bouquet garni, quando a essência é o vinho borgonho5: não dá para fazer com vinho de outro lugar. Por elitismo? Por mito de originalidade? Não, pelo sabor mesmo. Vinhos borgonhos têm baixa acidez, toque de madeira, frutado vermelho e ligeira adstringência que funcionam de forma particularmente boa com a carne vermelha e o longo cozimento.
Assim, boeuf bourguignon, só com vinho borgonho; restaurante para levar a vovó em Dijon, Speakeasy.
1 Speakeasy é um conceito para designar bares que “se escondem”, evitam tornar público sua existência e localização para selecionar seus frequentadores.
2 Bouef bourguignon é um prato típico da Borgonha, uma região no leste da França. Em geral, consiste em carne bovina braseada3 com vegetais (normalmente cenoura, cebola, bourquet garni4), vinho e água/caldo. A cocção úmida costuma ser longa (2-4 horas), em temperatura baixa (70-90ºC) em uma panela ao forno ou fogão.
3 Brasear é uma técnica de cocção que combina dois os métodos de calor: seco e úmido. Grelhar, fritar e assar são considerados calores secos. Cozir em líquido ou vapor são considerados calores úmidos.
4 Bouquet garni é o nome dado a um conjunto de ervas aromáticas (em geral, salsinha, alho-poró, tomilho, louro), normalmente amarrados com barbante em um bouquet, para serem facilmente retirados depois da cocção.
5 É interessante notar que enquanto o novo e novíssimo mundo se preocupam com as variedades de uva (merlot, carbenet, riesiling), os franceses e italianos se preocupam com o local de produção (borgonho, bordalês, barolo, toscano). Esses últimos raramente produzem vinhos de uma única varietal, não compartilhando a ideia positiva de “pureza” associada ao tipo de uva, mas sim ao local de origem. Por isso, eles valorizam tanto a denomição de origem6 e quanto mais específica for a denominação, mais valioso é o vinho. Parte disso é explicável pelo fato de que as demonições de origem especificam que varietais de uvas podem ser usadas para fabricação do vinho. Normalmente são duas ou três uvas permitidas e são priorizadas uvas autócones, ou seja, originárias da própria região (algo que não é possível em outros lugares porque as uvas são nativas do mediterrâneo). Em geral, uvas nativas são melhor adaptadas à região de origem, o resulta em vinhos melhores.
6 Denominação de origem é um selo de certificação. Cada denominação tem limites geográficos específicos de produção e regras específicas de como essa produção deve ser feita. Que, nas certificações mais rigorosas, vão desde a distância de plantio das parreiras até porcentagem em massa de gordura num leite para fabricação de um queijo certificado. A certificação mais famosa do mundo, provavelmente, é a dos vinhos espumantes de Champagne. Além de vir duma região chamada Champagne, o vinho espumante deve ser feito com uvas especificas plantadas, cultivadas, colhidas, transformadas em vinho de acordo com as regras da certificação.
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