Ox & Klee

O Rheinauhafen em Colônia era uma área portuária à beira do Reno até ser reurbanizada nos anos 2000. Por reurbanizar, entenda impermeabilizar tudo e erguer prédios envidraçados de “alto padrão” para pessoas de “alto padrão”. É nesse espaço que os cozinheiros do Ox & Klee conversam e fumam antes do restaurante abrir e o serviço começar. @davidmxml diz que restaurantes clássicos alemães têm mania de colocar animais como nome. Passei a prestar atenção e procede. @ninonlecomte me disse muitos anos atrás que restaurantes com duas estrelas costumam ser mais interessantes que os com três, pois são mais baratos e estão com sangue nos olhos para ganhar a terceira. Passei a prestar atenção e procede. Ox & Klee tem fome de estrela.

O jantar começa com uma sequência de seis amuse-bouche, cada um representando um gosto: ácido, doce, umami, amargo, graxoso e salgado. Como analista sensorial, me empolgo com a proposta, seria bem o tipo de coisa que eu faria se fosse cozinheiro. Impressiona-me que tenham incluído graxoso, nem os cientistas ainda têm muita coragem de assumi-la. À frente de outros postulantes a gosto como kokumi, cálcio, carbonatação, carboidratos, água e ferro, o graxoso já teve suas substâncias, receptores, transmissores, nervo, áreas corticais e percepção documentados. Há ainda uma certa leniência, uma certa precaução antes de gritar aos quatro ventos que gordura é um gosto, porque é difícil garantir que a sensação foi isolada, ou mesmo definir o que é um gosto. Por temeridade ou vanguardismo, Ox & Klee já grita.

A infusão de flor de cerejeira surpreende por combinar tão bem com a espuma de molho verde de Frankfurt, mas está mais doce que ácida – o gosto que representa. O doce de rabanete em suco de romã tem textura borrachuda que diverte e permanece. Agrada-me muito que tenham colocado a doçura no começo, que tenham feito doce de um vegetal e que o tenham feito borrachudo. O ovo de codorna em shoyu, pimenta e caldo de cogumelo é recheado com shitaki e explode em umami. Não é criativo, mas atende à proposta com louvor. O pimentão e gergelim são nada amargo, somente doce, não entendi. Joelho de porco ressecado, panqueca de aveia farelenta e pera apagada também estão doces, nadica da gordura esperada. Bolinho de sucuk e anchovas velho, murcho, mais apimentado que salgado, mais gordo que o anterior. Poxa, a brincadeira com os gostos era uma proposta tão legal! Uma pena não entregarem os gostos.

A primeira entrada nos remete ao recém terminado confinamento, período em que o restaurante vendeu comida em caixinhas e potinhos, com instruções para que os clientes finalizassem os pratos em casa. Assim como a comida para entrega, os elementos vieram à mesa separados e nós fomos convidados a montar nossos buns. O pão vermelho cheira a tomate no orto, mas não no retro. O boi braseado está macio, suculento e defumado; a couve-rábano e o trevo refrescam; a maionese com missô já é covardia, eita trem bom! Para o próximo curso, substituem meu camarão azul com caviar, caldo de galinha e emulsão de salsinha por um clássico da casa: alcachofra e pato. A casca seca da flor é torradinha, salgadinha, amendoada e viciante. A alcachofra em conserva destaca o amargor, o purê de hippophae é ácido e tem aroma que me lembra pequi. Pato está presente sem ser a estrela, a estrela é a alcachofra.

Peixe acompanhado por banana surpreende um alemão, mas é nenhuma novidade para um brasileiro. Já a textura dessa truta, surreal como os atuns gordos, surpreende e delicia brasileiros e alemães. O caldo é amendoado, as peles são crocantes, a chalota é caramelizada, docinha e aromática, tudo vai muito bem, muitíssimo bem. Em seguida, por mimo, trazem outro clássico da casa, o Maggi-Ei. O molho Maggi tem forte apelo no país, David já tinha me declarado o amor e orgulho germânico por ele, então tivemos um mini-surto por incluírem algo tão popular, industrial e controverso em um menu degustação refinado. Uma gema cremosa e deliciosa, esferas umamentas e aromáticas de Maggi, um apelo afetivo nacional. Precisa de mais alguma coisa?

O pregado suculento com gelatina ácida de maracujá, molho de macadâmia tostada, esferas aromáticas de alho negro e cebolinhas empanadas é rocambolesco como soa a descrição. A chalota recheada de ragu de língua de vitelo, aspargos enrolados em atum e molho de alcachofras são seguidos por outra surpresa de apelo regional, um halver hahn. Na versão do Ox & Klee, o sanduíche típico de Colônia é um pão de centeio coberto por gouda (também fazem gouda na Alemanha, pois o nome não é protegido pelos holandeses, e é o queijo mais vendido por aqui) maturado por 10 anos, mostarda e picles. Nada mais alemão. Em seguida, a carne vermelha finalmente reaparece: costela e filé, ambos de ovelha, cereja recheada de pistache e creme de cebola caramelada. Excelente toque ovino no filé, mas ranço e cartilagem dura na costela.

Como limpador de paladar, salsão, abacaxi e cacau. Incrível que o papel principal tenha sido dado ao salsão, e que ele se saia muito bem como protagonista de um prato doce. Talvez não como um limpador de paladar, pois, apesar da refrescância, o retrogosto forte e permanente acaba por não “limpar o paladar”. A sobremesa, enfim, junta esfera de chocolate branco recheada com gergelim preto, mousse de gergelim branco, geleia (bem ácida) de morango, morango fresco, espinafre (acrescenta uma terrosidade esquisitamente bem-vinda), gelado de iogurte com tomilho-limão (mega aromático e refrescante). Agrada-me muito o uso de ingredientes “salgados” nos preparos doces ao longo do menu, se eu fosse confeiteiro, faria o mesmo. Mas, nessa sobremesa, exageraram nas ideias e ambições. Para mim, mesmo com tanto primor técnico nos elementos individuais, o conjunto de sabores não funcionou.

Para terminar, bombons na mesma proposta dos amuse-bouche, um de cada gosto: azedinha e maracujá (ácido), cebola frita e damasco (doce), açafrão e grão-de-bico (umami), pão e folhas de beterraba (amargo), brotos e flor de sabugueiro (salgado) e tutano de boi e ameixa (graxoso). Nem todos particularmente agradáveis, mas correspondentes aos gostos prometidos e encantadoramente divertidos. Repetir a brincadeira no final é bem “encerrativo”, como o retorno à casa no mito do herói. Dias depois, pela internet, descobri que cada prato tinha seis elementos, cada um representando um gosto diferente. Se digo que só descobri dias depois, nem preciso dizer que os garçons não explicaram e os gostos não falaram sozinhos na refeição.

O serviço é minimalista, racional e impessoal, mas nunca insuficiente. O fio condutor do jantar, ou seja, a noção científica dos gostos, também é racional, mas na comida há espaço para sentimentalismo, pessoalidade, nacionalismo, regionalidade, carinhos e afagos. A comida é repetidamente intensa, sempre prioriza a potência, nunca seduz pela delicadeza e suavidade. Ai, ai, esses alemães. Incrível sentir isso num menu dominado pelas carnes e vinhos brancos, somente um dos seis vinhos da harmonização foi tinto. A pluralidade, intensidade e corpo que exploram nesses brancos é de tirar o chapéu, sério, de tirar o chapéu. Depois de 4 horas e 15 minutos passarem voando, cruzamos novamente a porta de entrada e os cozinheiros estavam de volta à beira do Reno para conversar e fumar, como se nunca tivessem saído dali. Podemos começar tudo de novo então?

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