Maison Lameloise

Os amuses-bouches da Maison Lameloise em Chagny são amusants e recreativos, no caso, inspirados num recreio mesmo: “bille” (bola de gude) de gaspacho doce e ácido, muito frutado, aroma de morango; “sucette” (pirulito) de manteiga de cacau, foie gras e cassis, os dois primeiros derretem na boca em sincronia; biscoito de Comté, creme de alecrim e rillete de truta; sanduichinho de Judru e rabanete. De entrada, as bolas de melão cobertas em leite de cabra vêm em redução de melão, queijo fresco, prosciutto e menta. É refrescante, leve, sem adição de açúcar, tem pouca acidez e suave retrogosto de cabra. O chefe de cozinha, Eric Pras, não busca intensidade desde o começo: afagos e beijinhos primeiro, por favor, obrigado.

David está animado e ansioso. É a primeira vez que vai a um três estrelas, ele se preocupa em como se comportar. Tranquilizo-o, não existe aquela coisa de mesa posta com diversos talheres, milhões de regras e potenciais gafes. Há nomes pomposos e etiquetas, é verdade. Serve-se primeiro as mulheres, depois os homens, primeiro os mais velhos, depois os mais novos, sendo o gênero mais importante que idade. Mesmo os pratos redondos têm lado certo para ser colocado na mesa. A garrafa d’água fica numa mesa de aparo longe o suficiente para garantir que você não alcance e eles tenham que lhe servir. Porém não se deve encarar como intimidação, deve-se encarar com a curiosidade e deslumbramento de quem faz uma etnografia. Não é curioso que estejamos pagando para que nos neguem o acesso à própria água?

Ainda bem que minha alergia me faz rejeitar a finíssima sablé com lagostins frios, gravlax de féra (um extinto parente do salmão cujo nome continua sendo usado para vender outras espécies salmonadas do lago Léman), gema confit e granita de peixe; pois acabo com os suaves, ligeiramente borrachudos e deliciosos caracóis com tomates hiper doces, frutados e recheados com pistaches. A salada, o coulis de salsinha e as torradinhas com sabayon de açafrão não somam, nem subtraem, fazem volume. No principal, somos cobaias de um mar e terra ainda em criação: contra-filé, barriga de atum, “caviar” de berinjela, batatas defumadas, melancia e sabayon de pimenta de cassis. As carnes conversam, a melancia alivia o peso do prato, só falta acertar a apresentação.

Na mesa em frente, uma senhora pede ajuda para escolher um vinho tinto pouco ácido, o sommelier, Sébastien Reymond, sugere um, ela aceita. Ele volta com a garrafa, mostra o rótulo, abre com solenidade, coloca um gole na taça (quem fez o pedido é sempre quem prova), ela observa a cor, sente o buquê, e bebe. (O que se espera que se avalie? Tudo, qualquer coisa. A princípio, para ver se o vinho foi bem armazenado, se não há algo anormal, mas também se gostou ou não.) Ela rejeita: muito ácido. O drama está montado, Reymond fica lívido, se curva para pedir desculpas e murmura para si: “moins acidulé, moins acidulé”. Olha ao redor esperando uma visão que o ajudasse a se lembrar de algum vinho de pH ainda mais alto em sua adega. (Se paga pelo rejeitado? Não. Mesmo se for só porque não gostou? Mesmo. O que fazem com o rejeitado? Espero que bebam.)

De limpa-paladar, uma espuma de especiarias ajuda a ligar as variações de texturas e sabores do damasco cru, cozido e congelado (sorvete). A sobremesa é bem verão setentrional: ruibarbo pochê com geleia de papoula, flor cristalizada de papoula, sorvete de ruibarbo e morango, suco e espuma de ruibarbo, morango e papoula. Diferentes texturas, sabores e temperaturas. Fácil, divertido e delicioso, não sei porque é tão comum errarem pratos que repetem ingredientes. Junto com o café, recebemos merengue com goma de maçã, bombom de chocolate com cumaru, toffee de caramelo e erva-doce (refrescante, doçura controlada!), choux com chocolates ao leite e amargo (poucos aromas, mas pelo menos amarguinho e pouco doce).

A Maison Lameloise é borgonha, borgonha até os dentes: Comté, Judru de Chagny, truta do Yonne, lagostins do Saône, caracóis de Fontaine, açafrão de Auxonne, creme de Etrez e não só cassis como também “pimenta de cassis” (a semente seca e moída) de Nuits-Saint-Georges. Até para defumar usam videira. Borgonha, claro. Quase centenário, o restaurante é um clássico, sólido e confiável nouvelle cuisine três estrelas do interior da França. Tanto no serviço, quanto na comida, preferem tradição à criatividade, não querem mais inventar a roda, pois o que fazem hoje já foi a nova roda um dia. Há décadas de história em cada prato e cada etiqueta, podemos pessoalmente preferir ou deferir, mas nunca desmerecer um lugar por seu estilo, cor ou orientação. A diversidade é bem-vinda, só o malfeito é mal-vindo.

Deixe um comentário

Crie um site ou blog no WordPress.com

Acima ↑