Lilia

Em uma construção do século XIX no Centro do Rio de Janeiro, o Lilia faz parte do projeto hipsteriano de gentrificação das áreas centrais das metrópoles brasileiras e atende executivos dos prédios corporativos e das estatais das redondezas. Não se pode dizer que o restaurante é uma ilha isolada, pois o barulho mal absorvido da cozinha, das mesas e dos alto-falantes compete sem sucesso com os sons da rua do Senado, que passa direto pelas portas-janelas coloridas e tortas demais para fecharem completamente.

A focaccia, ao mesmo tempo seca e gordurosa, e a manteiga, extremamente salgada, me fazem ter certeza de que o restaurante será mais uma das inúmeras decepções. O pão deve ser de ontem ou congelado, fora ”regenerado”, mas há tempo demais. Quando se “regenera” um pão, sua vida útil é curtíssima, estará seco assim que voltar à temperatura ambiente. O azeite é gostosinho, mas fico ali pensando no sentido de untar uma focaccia tão lustrosa com mais gordura. Eu viajo nos meus preconceitos: o Rio é um deserto gastronômico, tudo é caro, ruim, gordo, salgado, ultraprocessado, etc.

Mas as entradas aparecem. A beterraba não se destaca, apenas adoça a combinação harmônica de PANCs amarguinhas, creme azedo lácteo e refrescante, e sementes de girassol tostadas, amendoadas e aquecidas por especiarias de sotaque árabe. Se há um pecado, é o excesso de azeite, o prato está desnecessariamente encharcado. A barriga do olhete, comprado direto do pescador e pendurado aberto na geladeira para maturar, está fresca, macia e encantadora com o campanha apimentadinho e marrentinho. Dessa vez, encharcar em azeite de poucos aromas e leve amargor funciona, a sensação bucal do conjunto é deliciosa.

A canjiquinha, tão intensa em sabor de boa manteiga, rouba a cena da rabada suculenta, saborosa e equilibrada. O prato vegetariano é um misturão apimentado e aromático de vegetais, cogumelos, ervas frescas e kimchi de folhas escuras. As sobremesas não deixam por menos, eu me surpreendo com a complexidade de sabores da banana assada (notas de doce de leite) com chantilly (lácteo bem fresco e límpido), farofa salgada e merengue puxento. Já o mil-folhas, é feito com uma espécie de brownie desidratado, duro e crocante, uma mousse abrigadeirada bem doce mas chocolatosa, e alguma acidez, nenhum aroma, no caramelo de mel.

Na internet, costumam chamar o Lilia de “simples” e “barato”. Ainda bem que são termos relativos, pois a comida do Lilia pode ser simples na ausência de rebuscamento de elementos e detalhes, mas é complexa nas texturas e sabores; pode ser barata na ausência de ingredientes caros, mas é luxuosa nas origens, diversidades e aproveitamentos. A ousadia de servir boa comida por R$70 no Centro do Rio é nada simples e barata.

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