Sabırtaşı

Subindo a rua Istiklal, passo em frente e não encontro. Deve estar fechado, é domingo e Istambul está em confinamento rigoroso (exceto para turistas, que podem andar livremente pelas ruas desertas). Decido continuar até a praça Taksim, algo há de estar aberto e me chamar atenção. Vou e volto sem sucesso. Passo de novo em frente e, agora descendo, vejo um cartaz na parede de uma viela: Sabırtaşı. É aqui. Aqui, no caso, é uma viela escura e abandonada, com um homem desconfiado fumando na entrada. Entro com o coração palpitando, não quero me meter em problemas. Nenhuma indicação. Volto e pergunto ao homem, talvez ele saiba, talvez seja na porta ao lado, que leva a um jardim de inverno bem cuidado, todo verde e florido, iluminado por lampadinhas amarelas. Eu aponto para o cartaz e ele aponta para o corredor escuro. Tá, lá vamos nós de novo.

Vou até o fim e arrisco uma entrada na lateral que leva a um corredor ainda mais escuro. Uma escada. Subo um, dois, três, quatro andares, no hall, duas cadeiras e um cartaz “Sabırtaşı dinlenme tesisleri.. 🙂🙂”. Seja o que for, tem emojis sorrindo, não pode ser ruim. Cinco, seis andares. O restaurante está escuro e revirado, as mesas estão cobertas de quinquilharias, um grupo de três homens conversa em uma mesa nos fundos. A cena é igual às das cantinas italianas nos filmes de mafiosos. Fico na entrada, sem saber o que fazer. Meia volta volver? Espero de pé pelo que parece uma década antes que Mustafa Topçuoğlu venha me atender. Pergunto se o restaurante está aberto, se posso comer ou levar. Ele balança negativamente a cabeça e diz “take away”. Ótimo, como no hotel. Peço um içli köfte e um mantı, e Mustafa resolve me dar um voto de confiança: “Fine, you can sit”.

Com o resto do restaurante escuro, sento perto da janela, onde os três homens conversavam e fumavam animadamente. Assim que me sento, eles param de falar e me encaram, esperando que eu me toque e vá sentar em outro lugar. Eu resisto, o dono me deixou sentar e, de qualquer forma, não entendo uma palavra do que dizem. Depois de uns minutos, eles voltam a conversar e eu a respirar, ufa. Mustafa vem colocar a mesa para mim. Passada a desconfiança inicial, ele se transforma em gestos amigáveis e sorrisos calorosos. Atende com esmero, parece feliz em trabalhar, ver e receber gente. Deve ter puxado ao pai, Ali Bey, que mudou de Karamaras para Istambul em 1988 e vendia quibes em um carrinho de rua para sustentar a família. Relatos destacam o carisma e o jaleco imaculadamente branco do patriarca que faleceu em 2009, deixando o carrinho e o restaurante para o filho.

Mas há mais que simpatia e alvejante nessa história, o içli köfte é maravilhoso. Para nós que estamos acostumados com quibes secos e sem sabor, a Sabırtaşı surpreende. A casquinha bem fina, sólida e crocante faz um barulhão quando a mordemos. A massa de triguilho tem sabor leguminoso ou cerealoso, talvez seja feito com um trigo varietal, moído há poucos dias, hidratado em caldo de vegetais. O recheio tem leveza de textura e sabor, com aromas de ervas frescas, nada cansativo, nada bege. É estranho não precisar de refrigerante para engolir um quibe. Já ligeiramente apimentado, pingar gotinhas da lima aumenta a picância, o frutado, a refrescância. Em vez de azeitona, há um pedaço grande de noz-pecã que, junto com as especiarias, remete imediatamente ao Oriente Médio. Isso sim é um quibe.

Peço um ayran, iogurte diluído em água, esperando algo caseiro, mas é o industrial da Sütas em seu copinho plástico azul. É ácido, docinho, fresco e saboroso, perfeito para contrabalancear comidas apimentadas. O mantı, pequenas trouxinhas de massa de trigo recheadas, é um preparo que remonta aos comerciantes que percorriam a rota da seda, e está relacionado a diversas variações de pastéis ao longo de toda a Ásia e leste Europeu, indo do manju japonês ao pierogi eslavo. Os minúsculos recheios, bolinhas de pasta de carne, aparecem sutilmente em gosto umami e aromas de caldo de carne. Os molhos de pimenta e de iogurte com alho são absolutamente lindos, parecem um quadro impressionista, brincam de quente e frio nos olhos e na boca. Embora os recortes de jornais nas paredes mostrem fotos apenas dos carismáticos patriarcas, são as mãos das mulheres nunca nominadas que moldam essas delicadas preciosidades. Pratos entregues, a mulher de Mustafa sai da cozinha e vem ao salão. O casal conversa com carinho e cumplicidade. Claramente, há mais que simpatia e alvejante nessa história.

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