O item mais barato do cardápio do Bozar são as “tranches” de casse-croûte por 29€. As opções são presunto ibérico e enguia defumada; porco negro de Bigorre, pato e fígado gordo de ganso; fígado gordo de ganso, verjus e pimenta de Espelette. A tradução literal de tranche é fatia, mas eu simplesmente não consigo acreditar, por 30€, não pode ser uma fatia. Deve ser um pedaço, uma pequena torta. Em Bruxelas, um jantar inteiro num bistrô maneiro custa 30€, sabe? Tiramos a prova no Instagram, as fotos marcadas pelos clientes mostram tortinhas inteiras. Pequenas, claro. Mas tortas inteiras.
Os restaurantes ainda estavam com salões fechados por conta da pandemia, então encomendamos uma “tranche” de porco, pato e ganso por telefone e vamos buscar. Somos atendidos com sorrisos e simpatia pelo chefe de cozinha, Karen Torosyan, campeão do mundo de pâté-croûte em 2015. Há uma fila de sacolas prontas, mas nenhuma é a nossa. Ele liga para cozinha, abre uma sacolona chique de papel e logo nosso pedido chega: uma fatiazinha. Uma fatiazinha de torta embalada à vácuo, um minúsculo potinho de picles de vegetais e uma sacola enorme para fazer tudo parecer ainda menor. Porra, trinta malditos euros. É melhor que nos faça ver estrelas.


Em casa, improvisamos uma janta para encher a barriga e, heresia (pâté-croûte se come frio), colocamos nosso suja-dente no forno porque ele é nosso e a gente come como quiser. O que sai é ainda mais lindo do que o que entrou. O aspic no topo da fatia derrete e vira um líquido límpido e raso aos olhos, mas turvo e profundo à boca. No fim, a fatia é grossa e tem uma porrada de sabor de carne que satisfaz em dobro. Como faltam termos técnicos para descrever a harmonia sublime de sabores e texturas de vísceras, músculos e gordura, vamos de termos vulgares mesmo: vimos as malditas das estrelas.
David, que não conhecia pâté-croûte, passa a procurar versões pagáveis por toda Bruxelas, porque 30€ é insano (e eu fiquei louco, louco de vontade de pagar 110€ pelo degustação do Bozar). Tento advertir que não é pelo pâté-croûte que David se apaixonou, é pela qualidade do porco, do pato, do ganso, do Karen. As pessoas dizem “eu gosto dessa cozinha” ou “daquele prato”, mas o que importa não é o nome do preparo, é como e com o que ele foi preparado. David me zoa imitando o Castello–Lopes: “moi, c’est que j’achète c’est le savoir-faire, la precision, la centaine d’heures de travaille”. Pode rir à vontade, é exatamente isso.
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