Ernst

Dizem que o @Ernst.Berlin é o restaurante do futuro, só não costumam dizer o porquê. Acredito que por colocar em prática tudo aquilo que é considerado correto, ideal, sustentável: aproveitamento integral, sazonalidade, pequenos produtores, relações diretas. Mas essas propostas existiam no passado, existem no presente e existirão no futuro, me parecem menos futurísticas e mais expressão da seriedade do restaurante. A seriedade, inclusive, está no nome, Ernst significa “sério”. Talvez o Ernst possa até ser sobre o tempo, porém não sobre o futuro. É mais sobre o tempo de plantio, colheita, fermentação, pesca, viagem, pesquisa, maturação, cozimento, serviço. É isso, o Ernst é um restaurante sobre a quarta dimensão, o tempo.

Para começar, o mais óbvio, o tempo da comida. Kombu colhido aos três anos, mel colhido há três anos, cavala maturada uma semana, speck maturado cinco meses, ameixa grelhada dez segundos, atum grelhado duas horas, missô fermentado por quatro anos, manteiga batida hoje, preserva de yuzu do inverno passado, ameixa do fim do verão. Quando fui, eles tinham acabado de receber um atum de 51 quilos e, portanto, a refeição todo girou em torno dele, suas diferentes partes e diferentes formas de fazê-las. Na semana seguinte, eles recebem outra coisa e servem um cardápio completamente diferente. Aí, tem o tempo que o Ernst investe em excursões aos sítios de Berlim, às vinícolas na França, ao produtores do Japão, pois usam ingredientes única e exclusivamente de fornecedores que conhecem pessoalmente. Os mais curiosos podem acompanhar as viagens nos stories no Instagram, eles levam isso a sério.

A refeição também leva seu tempo. São três horas para seis vinhos e mais de 30 cursos. Ironicamente, é uma refeição inteira de primeiras mordidas, sem chance de explorar a temporalidade dentro de cada prato. Acho tudo muito interessante, executado à perfeição e também fisiologicamente improvável que alguém consiga aproveitar 30 cursos. Eu, pessoalmente, gosto de degustações que oferecem e dominam a construção de pratos de diferentes tamanhos e complexidade. Mas é estilo, é proposta. Em termos de sabor, nem tudo que o Ernst serve é incrível, e a sazonalidade e o aproveitamento integral dos ingredientes geram redundâncias. O @davidmxml ficou impaciente com tanto dashi e atum, me lembrando da tortura que foi o Apèrge, em que as pessoas começaram a se levantar e ir embora depois de quatro horas e nenhum sinal das sobremesas.

Há então o tempo histórico, a escola, a geração. Se comparo a nouvelle cuisine ao impressionismo, o Ernst é pós-impressionista. A nouvelle cuisine trocou o classicismo, o foco na técnica, nas horas e horas de cocção, nas apresentações arquitetônicas, pela instantaneidade de pinceladas soltas, frugais e leves. É menos sobre a forma, proporção e perspectiva, mais sobre esse tom de verde das ninfeias às cinco da tarde em meados de abril. O Ernst é uma nouvelle cuisine tardia, exagerada, colorida, solitária, independente, pontilhista. É menos sobre o atum mais gordo, macio e caro que existe, mais sobre as matizes de cada parte do atum pescado em tal lugar, com tal idade, em tal época do ano, maturado por tantos dias, cozido por tantas horas. Como cereja no bolo de coincidências, temos ainda a influência japonesa no impressionismo, no pós-impressionismo, na nouvelle cuisine e no Ernst. É ou não é uma pós-nouvelle cuisine?

Ainda, de todos os ismos que o Ernst põe em prática, o que mais me chamou a atenção foi a ausência de lavadores de louças. Uma mesma equipe de cozinheiros faz todo o mise-en-place, lavam todas as louças, limpam todo o restaurante, recebem todos que tocam a campainha, finalizam os pratos na cozinha de linha e servem os clientes. É um restaurante sem recepcionista, sem garçons, sem faxineiros, sem plongeurs. E isso também é sobre o tempo, o tempo de vida, o tempo que as pessoas têm na Terra. Porque não é sobre os cozinheiros limparem, cozinheiros de todas as cozinhas limpam. O ponto é não ter alguém que apenas limpe, alguém cuja vida, cujo tempo, seja dedicado apenas a lavar louça, esfregar paredes, varrer chão e desinfetar banheiros. Isso é revolucionário, idealístico, surreal. Não existia no passado, não existe no presente e, acredito, seria ótimo se existisse no futuro.

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Obs. Breve descrição dos pratos nas legendas das fotos.

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