A primeira coisa que fiz ao terminar o primeiro episódio foi pesquisar as roteiristas, produtoras, diretoras, atores e me assustei: ninguém é cozinheiro. Mas… como? É daquelas ficções que conseguem ser mais reais que qualquer documentário, mais reais que a própria realidade, um perfeito exemplo de simulacro, consequências/fenótipos/sintomas/imagens reais para uma causa/genótipo/doença/evento inexistente. Curiosamente, é o exato inverso de Chef’s Table, que mostra imagens irreais, milimetricamente construídas, arcos de heróis dignos de conto de fadas, baseadas em pessoas e restaurantes reais. The Bear são imagens reais de um restaurante fictício. E é lindo, é foda, é de arrepiar. Louco que o documentário busque a ficção e a ficção o real, não? Aquilo que um se esforça para mostrar é o que o outro se esforça para esconder.
Fico imaginando como deve ser para leigos. Confuso? Não há aquela mania horrorosa de explicar tudo para o espectador, de fazer diálogos impossíveis de alguém comentando o óbvio para alguém que sabe exatamente o que está acontecendo. Quem pegou, pegou, quem não pegou, azar. Para quem trabalhou numa cozinha nos EUA, é piscadela seguida de piscadela (ou gatilho seguido de gatilho). Stage, corner, all day, prep, jus, lowboy, Noma, EMP, Hart Bageri, urgency, CIA, CdC, sharpies, cambros, a sujeira, a inspeção, os livros, a batedeira, os fornecedores, o lixo, o cigarro, o faz tudo, as relações, o companheirismo, a agressividade, a infantilidade, a teimosia, mais teimosia, a água no pint, o family de teste, o ligar o forno ao chegar, não enxugar as mãos no avental, a boquinha do fogão acesa, as neuras com as facas etc, etc.
Aliás, talvez, o tema do seriado seja a neurose dos cozinheiros. E céus, haja neurose. E neurose se transmite, contamina, se aprende numa cozinha. Quem entra, ou desiste, ou passa a cortar fita com tesoura. The Bear mostra que cozinheiros são antes de tudo neuróticos forçados a improvisar, nadar, a apagar incêndio, a correr sempre atrás, nunca na frente. A Helen Rosner reclamou do confeiteiro por estar completamente deslocado. Mas acho que é essa a essência da personagem, o novato ingênuo, delicado e idealista. Ele está ali justamente para contrastar, para incomodar.
A energia da série é igual a de trabalhar em uma cozinha: frenética. O ápice é obviamente o episódio 7 em plano-sequência. Não, não escrevi errado, não é o plano-sequência do episódio 7, é o episódio inteiro em plano-sequência. E sabe o que é pior? Faz todo sentido. Plano-sequências são como bifes wellington ou entremets, os diretores normalmente fazem apenas para mostrar que são capazes, apenas para se exibir, “ei, olha esse plano-sequência que eu fiz”. Aqui, não é apenas para se gabar, é quase como se o plano-sequência tivesse sido inventado para filmar um restaurante desmoronar em vinte minutos. A ausência de cortes faz parte da construção da tensão (visível nos atores, o que também quebra o encanto e… cai bem na tela? Aproxima do teatro?), do cansaço, da apneia, do mergulho no caos.
Eu acho que adorei o caos, a falta de rumo, a sensação de patinar. Não há obrigação de redenção no fim dos episódios, não há obrigação de continuar um arco iniciado. Aliás, os episódios são bastante independentes, circulares. É essa a sensação de cozinhar: dar voltas, todos os dias diferente mas igual, sem garantia de que vai dar tudo certo no final. O seriado se permite ir e voltar, se perder, nem todo segundo precisa ser bem aproveitado, ter uma função, ser um ponto em um conecte-os-pontos para formar uma imagem no final. Outra mania irritante de Holywood. Aliás, as viagens (o urso, os pesadelos, monólogo bizarro) no geral caem mal, deslocadas, sem sentido, leva a nada. Mas esse é o objetivo? Ser desconfortável, esquisito, ruim, deixar o espectador desorientado. Achei adequado à história, ao universo retratado, à proposta.
Para mim, se derrapam, derrapam no clichê de toda maldita hora colocarem uma colherada na boca, fecharem os olhinhos e dizer “mmm”. Pavoroso, grosseiro, indesculpável. Numa cozinha profissional não se fecha olhinhos e diz “mmm”, nem se emite opinião no primeiro segundo da primeira colherada. Nunca. Além disso, existe um limite do que se pode fazer de última hora com seja lá o que tinha na prateleira do rango dos funça ou no porta-malas de um contrabandista. Não tem chefe do melhor restaurante do mundo que faça boeuf bourguignon espetacular de última hora com carne ruim, vinho barato e panela irregular. Isso é mito da técnica, a ideia de que bom cozinheiro tem talento mágico para pilotar um fogão. Nope. Bom cozinheiro consegue bons ingredientes, boa estrutura, se organiza, planeja, pesquisa, trabalha, trabalha, trabalha.
Por fim, me irrita a branquitude, as madeixas loiras e os olhos “celestiais” do protagonista. Podem dizer ser uma série inclusiva porque quase todo mundo além dele (e do primo) são negros e latinos. Mas aí que tá o desconforto, porque justamente o branquelo é o chefe/proprietário/herói/protagonista. Um homem assim deveria ser modelo ou ator, não cozinheiro pobre fodido cortado queimado numa espelunca de Chicago. Pegaram um ator galã demais para o papel? Então, aí é que tá. Os chefes de cozinha reais não são galãs também? São. A estrutura racista do seriado reflete a estrutura racista da realidade. Por que só homens, brancos, héteros, bonitões, tatuados são chefes-proprietários e comandam uma equipe de latinos e negros? Por que só eles ficam famosos, ganham prêmios, saem em capa de revistas? Aí que tá, amores, aí que tá.
Adorei o “eu não engulo” versão crítico de cinema!
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