Quando cheguei ao Glouton, Leonardo Paixão estava à paisana na calçada se despedindo de clientes. Eu estranhei, um chefe de cozinha fora da cozinha? Mas, em seguida, ele reaparece devidamente uniformizado do outro lado do vão. Que atípico. Tinha acabado de chegar? Improvável. Tirou e colocou o uniforme porque a legislação pede? Ou para evitar que todos os clientes pedissem atenção? Não sei. Seja o que for, demonstra preciosismo. Paixão é metódico, perfeccionista, joga pelo livro. Não no salão, onde apenas um precisa fazer o trabalho por todos: Jairo, claro. Mas na comida, que se volta para a técnica, para a concepção clássica francesa de cozinha como intervenção, transformação, manipulação, horas de preparo.
Seus dez petiscos, especialmente o interior cremoso e exterior crocante da mil-folhas de mandioca-brava e maionese de malagueta, mostram que ele prioriza as texturas, elas são sua obsessão. Descuida do óbvio: sabor. Apenas dois dos dez me despertaram do tédio, o blini de tapioca com salmão intensamente defumado e a tartine de tomate-uva confitado, burrata cremosa e basílico, cujo frescor do manjericão e doçura intensa do tomate foram um bote salva-vidas em meio ao mar de amido e gordura sem riqueza de sabores. Um salmão bem defumado e a combinação de tomate com basílico é o melhor que o Glouton tem a oferecer?
O famoso ovo mole com surubim defumado, farofa, canastra e gruyère gratinados é uma bomba pesada de sal e gordura. A gema, suposta protagonista, vem escondida e, debaixo de tanta coisa potente, escondida permanece. É apenas uma pequena entrada, eu e minha companhia jogamos de um lado para o outro: “come aqui”, “tô comendo”, “você não está comendo”, “estou sim, você que não está”. Uai, a gente estava disputando para ver quem comia menos? Se tivesse de resumir as entradas, diria que são variações laboriosas de batata, pão, queijo e bacon. Amido inundado de gordura. Isso é ótimo, não? Há quem goste. Eu nunca fui particularmente fã de batata frita, costumam ser monótonas.
A papada de porco com mil-folhas de mandioca e pastel de batata-doce teve destino parecido, foi de cá para lá, de lá para cá, acabou ficando no prato. A carne braseada, moldada e então assada para também ficar com crosta por fora, suculenta e macia por dentro, estava perfeitamente preparada, obrigado. Só que a papada é gordíssima e vem acompanhada de mandioca com quilos de manteiga e um pastel? Não é uma questão de calorias, é uma questão de oferecer sabores, oferecer contrapontos. Até a acelga estava gordurosa e salgada, era mais do mesmo. A cebola, único refresco, tinha uma acidez barata, um sabor de ovo de codorna de boteco. Não rola.
O pato com mexerica, batata-doce e couve grelhada era mais promissor, além da carne absolutamente perfeita, tinha o agridoce frutado da calda para recuperarmos o fôlego. Mas minha companhia não se interessou e, a essa altura, eu passava mal. Volta para cozinha, esquece a sobremesa e traz logo a conta, por favor. Tive de me perguntar: será que sou eu que não tenho paladar e estômago para comida mineira? Bem, acaba de sair um livro mostrando que a noção de comida mineira é uma construção recente e política. (Nada contra, espertos os mineiros, bestas os paulistas.) Então, como alguém que cresceu em terras caipiras, raspou o prato de três gordos kaols nos almoços em BH e estava acompanhado de um mineirim nascido e criado, acredito que não foi esse o problema.
Se o Glouton me passa uma mensagem, é a de que gastronomia é mesmo uma arte. Nela coexistem escolas, correntes estéticas, visões de mundo que não ao acaso refutam umas às outras. Tal qual um pintor acadêmico, Paixão se importa com a figura, a anatomia, a perspectiva, a verossimilhança; e acusa o foco nas cores, o uso de uma linguagem mais rápida e direta, de servir de muleta para a mediocridade. Concordo, o destaque ao ingrediente é fartamente usado de muleta por aí. Da exata mesma forma como o preciosismo técnico serve de muleta para a comida medíocre do Glouton.
Paixão se equivoca em desdenhar a mensagem de cozinheiros que enaltecem ingredientes, porque conseguir ingredientes extraordinários e saber lidar com eles também é uma forma de preciosismo técnico. Citando Whistler, Vincent van Gogh escreve para seu irmão Théo: “Sim, eu fiz isso em duas horas, mas trabalhei anos para poder fazê-lo em duas horas”. Claro que é possível fazer comida extraordinária com os conceitos da culinária francesa clássica, minha refeição favorita na vida foi uma clássica francesa. Mas muitas horas de cocção não fazem milagres, não substituem bons ingredientes, muito menos a sabedoria de combiná-los, pois faltará exatamente o que falta à comida aqui: sabores.
Discordo, portanto, do LA’s 50 Best Restaurants: o Glouton não me parece um lugar para ficarmos de olho. Talvez algo novo e extraordinário ainda possa vir de seu chefe de cozinha, é natural que cozinheiros latino-americanos voltem da Europa com o clichê “técnica europeia, ingredientes locais”, extremamente natural. Eles são excelentes para fazer serviço de quarto em hotéis internacionais, a versão gastronômica atual dos retratistas da corte, mas só entram para a história quando transcendem o que aprenderam na academia. Paixão acredita que o Glouton já é sua transcendência, quem discorda corre o risco de ser chamado de comunista. Talvez sejamos. Mas se ele está feliz com o que faz e seus mecenas estão felizes com o que comem, o que mais importa?