Picchi

Diante da pergunta de todas as noites, o que vamos jantar hoje?, meu irmão sugere massa e eu sugiro torrar, gastar, esbanjar. Nenhuma surpresa então que acabamos no Picchi. Em plena Oscar Freire, o serviço é formal, cortês, servente e reverente do jeitinho que a elite gosta. De terno e gravata, os funcionários da frente da casa talvez somem o dobro do número de clientes, que por sua vez vestem blazer e colarinho desabotoado. Como era apenas uma janta no meio da semana, dispensamos o menu degustação. Os principais não me animaram muito, então pedimos uma entrada e três massas. Os italianos e seus antipasto, primo, secondo, contorno, dolce que lutem.

Ganhamos de tira-gosto um tortellino recheado de purê de beterraba encorpado, caramelizado, maillardado, doce, textura e sabor parecidos a um brigadeiro de colher. O leve molho de queijo de cabra curado, lácteo e salgadinho, vai muito bem com o “brigadeiro”. É o tira-gosto que todos querem servir e poucos conseguem: uma longa pequena morte. O tartar de cordeiro com ostra e maçã verde é dominado por limão-cravo, a carne acaba coadjuvante e se você me perguntar cadê a ostra, eu não saberei dizer. A incongruência do aroma de limão-cravo com o salgado é curiosa, meu irmão estranha, eu acho desafiadora e divertida.

Deve ter ficado claro que seríamos daqueles que pedem uma entradinha, tiram um zilhão de fotos e postam ao longo dos meses para parecer que vai toda semana. E sabe o que foi incrível? Mais que não julgar ou constranger, entenderam rápido a ideia (matar a vontade do meu irmão, vai que o bebê nasce com cara de massa! :O) e a realizaram com louvor. Colocaram as três massas no meio da mesa, pratinhos para cada um e tadá: um bufezão de massas! Esbanjando naturalidade e que cortesia, deixaram a gente pagar mico e destruir a comida (sim, não sejam burros, não façam bufês, peçam uma a uma para comê-las em seu auge, direto da cozinha).

Com porcini em brunoise e menta, os tagliolini são estreitos e finos, mas têm uma surpreendente presença, um ao dente delicioso e estimulante. O azeite chileno em cima da mesa é super fresco, verde, untuoso, picante, zero ranço e, para o bem ou para o mal, distintamente sem amargor. Já os pici foram algo inédito para mim, a massa é dura, grosseira, bruta. O garçom avisa que o chefe faz os pici bem ao dente e pergunta se tudo bem. Tudo bem? Meu amor, tudo ótchymo, me vê uma surra de pic…i duro. Em contraste com a rusticidade da massa, a linguiça artesanal do molho é suave e delicada, intensidade parelha com a lentilha. Leves no sabor e no sal, a chuva de grana padano cai muito bem, obrigado. Delicadeza também descreve os agnolotti recheados com coelho, azeitona e manjerona. No geral, eu não gosto de azeitona, mas a precisão e equilíbrio do prato me fez comer feliz.

Um bom motivo para ir ao Picchi é entender que as massas não são todas iguais. Cá entre nós, as industriais de mercado são mesmo todas iguais, vão direto de cru para sobrecozido, tanto faz se é penne ou espaguete. Não que possamos comparar um prato de massa de R$10 com um de R$100, as razões de existir são diferentes. Além de ser uma aula sobre texturas, as massas de três dígitos são deliciosas e terrivelmente belas (talvez a ousadia de iluminar o salão exclusivamente com as luminárias de mesa ajude, sugiro se divertir com o efeito de apagar a da sua mesa), os molhos e recheios instigam, desafiam, aumentam nosso repertório. Quem diria que cogumelos vão bem com menta, que “brigadeiro” de beterraba e molho de queijo rendem uma pequena morte? Vamos vivendo e aprendendo.

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