Eu e outros três grupos chegamos antes de abrirem a porta, então eles conversam na calçada e eu ouço. São todos estadunidenses e, em dois segundos, estão derrubando nomes de restaurantes famosos que visitaram mundo afora. Parece que ainda mais que em São Paulo, os restaurantes famosos da Cidade do México são zonas internacionais, clientela toda estrangeira, inglês é primeira língua, servem caricaturas de comida local e cobram preços em dólar. No caso do @Rest_Quintonil, os 4,500 pesos são mais que um salário mínimo no México, porém meros US$200 pros gringos. Poderia ser uma ironia: os turistas vêm atrás da identidade e autenticidade local, elevam os preços, mudam o serviço, direcionam a comida, impedem os locais de comerem nos restaurantes de sua própria cidade e acabam com uma caricatura da identidade e autenticidade local. Mas não é ironia, viemos pela caricatura mesmo, por mais um nome do 50 Best para derrubar nas calçadas mundo afora.
O restaurante é pequeno, uma dezena de mesas e um balcão de frente para a cozinha de linha. Começam a degustação super ousados com uma salada amarguinha, rasgadamente ácida, e babenta (como quiabo). Palma, pepino, tomate e ervas estão equilibrados, refrescantes, herbáceos, intensos, coloridos, em mini brunoise tão preciso e precioso que dá dó de comer. Quintonil começa batendo a piroca na mesa e só nos resta lamber toda a baba maravilhosa. Os outros dois petiscos, o peixe à Veracruz com matcha e os cogumelos grelhados, também são intensos, deliciosos e brincam com amargor. O primeiro prato, a vieira, brinca com ardências diferentes: a pungência intensa, efêmera e anasalada do wasabi, a refrescância do limão e do rabanete, e a crescente e permanente picância da pimenta. A vieira desaparece, quem se importa, o prato é maravilhoso.












O caranguejo-aranha, mole verde e limão kaffir é outra bomba de sabor, super ácido, mentolado, herbáceo e limoneno, eu começo a achar repetitivo, eu abaixaria completamente o tom depois dos petiscos, recomeçaria do zero. É exatamente o que faz o próximo prato, um nacho com de carne de sol e salada, super simples, focado no contraste entre secura, salgado e maillard da carne e a umidade, doçura e frescor das folhas. Perfeito. Então, recebemos tortilhas, abacate com larvas de formiga na manteiga, feijão santaneiro, chouriço de formigas chicatanas, e salsa de berinjela. Os sabores são suaves, especialmente depois do começo ousado, mas muito longe de insossos. Todo mundo aparece em perfeita harmonia: feijão, abacate, manteiga, tortilha, berinjela, chorizo. O chawanmushi de milho e dashi é recheado com ovas de salmão. Pai nosso que estais no céu, que delícia. O milho bem milhoso é potencializado pelo umami do dashi e rouba a atenção das ovas. Pingam óleo de baunilha em cima, eu sinto nada dela. Talvez por só conseguir associar baunilha e doçura?
O peixe em “adobo” de grilo e feijão vem com couve, brócolis, vagem e purê de batatas. Bem terroroso, suave, amendoado, tostadinho, tudo muito bem feito e gostoso, muito mais meu tipo de prato principal que a costela de porco barbacoa com chuchu, polenta com pimenta, pico de gallo de maçã verde, salsão e erva-doce, PANCs refogadas e kimchi. Tudo individualmente saboroso e bem executado, mas os elementos não estão ali para conversarem entre si e não conversam mesmo. O limpa paladar é um sorbet de cacto que retoma a potência, acidez e presença do início da refeição. Melonáceo, herbáceo, mentolado, pepináceo, uma bomba de sabor que nos faz querer mais e mais e mais. Recebemos, então, algo ainda melhor: creme fresco azedinho e iogurtento, mel de abelha nativa exótico, maracujá aromático e crocante, e caviar osetra salgadinho e marítimo. Puta que pariu. Morri e fui pro céu. A última sobremesa são rochas deliciosas de goiaba, mas a marmelada de goiaba (redundante) e o chocolate branco (sabor desaparece ao lado da goiaba) deixam o prato excessivamente doce. Para quebrar a doçura, um café super encorpado de Oaxaca, frutado e ácido no orto, mas doce e chocolatoso no retro.
O Quintonil não é um restaurante de protagonistas, muito menos de carnes protagonistas. A comida traz múltiplos ingredientes, camadas e conceitos, vai das PANCs ao caviar, do adobo ao chawanmushi, do amargo ao doce, dos insetos ao chocolate branco. E faz isso com muita harmonia e respeito a cada elemento. É um estilo que dá trabalho, requer muitos fornecedores, referências, testes, sorte. Fazer tudo funcionar e entregar a refeição memorável que entregam beira ao impossível, mostrando muita disposição e disciplina. Talvez viver no eterno segundo lugar depois do Pujol seja um motivante? Uma síndrome do duas estrelas sem as estrelas? Enfim. É verdade que custa uma bolada e é um restaurante para estadunidense ver, mas eu tenho mais dedos numa mão do que nomes de restaurantes no nível do Quintonil para derrubar por aí. Pois que me chamem de gringo e levem meus dólares, por essa comida, eu engulo o que for.
Que ótimo texto! Estava em dúvida, me animou a ir!
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