Kan Suke

Perdoem-me a fraquejada, começarei justamente pelo que chamo de mito da originalidade, mas compararei o Kan Suke com o pouquíssimo que conheci no Japão apenas com fins descritivos, não é valorativo. O mito continua a não valer um pequi roído. Pois bem, as raízes do Kan Suke me parecem indistinguíveis de restaurantes de sushi no Japão, só o que cresce acima da terra reflete o solo e as águas brasileiras em que brota. Não é de se espantar, afinal a maioria dos ingredientes e clientes são colhidos e pescados no Brasil. Mas o que isso quer dizer? Bem, que apenas olhando fotos e lendo o que os outros escrevem sobre o restaurante, haveria nenhum estranhamento se ele estivesse em Tóquio. É na boca que a diferença aparece: o Kan Suke busca intensamente a intensidade.

O primeiro prato pegou a todos de surpresa: é uma explosão de sal, umami e deliciosos aromas. As fatias de garoupa são soterradas numa gelatina de caldo de atum-bonito defumado (katsuobushi), pasta de gergelim e yuzu. Espanta porque não é o que se espera de um restaurante de sushi. Esperamos todas as delicadezas, sutilezas e nuances de arroz branco com peixe cru. De imediato, o Kan Suke mete o pé na porta e deixa clara sua identidade.

Para contrastar, seguem três preciosas lâminas (sashimi) de barriga de atum gordo (ootoro). Oportunidade para provar os bons wasabi, shoyu e conserva de gengibre (shoga gari). Não são loucuras de complexidade e profundidade, mas interessantes, intensos e sem sabores desnecessários (zatsumi). Uma curiosidade é que misturam o “wasabi” em pó (que não é wasabi, mas rábano-de-cavalo*) com “nabo” (deve ser daikon, então, na verdade, rabanete) ralado. Não vou dizer que imita o wasabi de verdade ralado na hora, porque certas coisas na vida não podem ser imitadas, precisam vir do céu. Mas o daikon complexifica o pó de “wasabi” com doçura, aromas frescos, frutados e verdes, coisas que existem no verdadeiro wasabi.

Meus irmãos e cunhada recebem chips de camarão, que provavelmente é outra bomba de sabor, eu recebo um equilibradíssimo tempurá de garoupa com folha de shiso. O peixe explode em suculência, a massa é leve, embora pouco dourada, tem profundidade vinda de sabe-se lá o quê. Algumas vezes, minha alergia é uma benção. Não fugi da próxima bomba, um pargo com shiso, vinagre, gengibre e shoyu. Com muita acidez, o prato é ultra refrescante e pungente, chega a parecer gaseificado. Tem nada a ver com o que segue, um pudim na tigela (chawanmushi) recheado com cogumelos, peixe e (para eles) camarão, coberto de raspas de limão e caldo de peixe com sabor de peixe como sabor de peixe deveria sempre ser. É extremamente quente e aconchegante logo depois do extremamente refrescante e pungente.

O peixe-serra marinado com gema, shoyu, nabo e alga é outra explosão de intensidade, o excesso de sal e açúcar do conjunto me enjoa. Mais equilibrado, o tempurá de robalo acompanhado de caldo de peixe, cogumelo, cebola, repolho roxo, cebolinha e raspas de limão é o favorito de todos. O robalo fresco e cremoso desaparece luxuosamente na boca. Na fritura em caldo (agedashi), a massa perde a crocância, mas atire a primeira pedra quem não curte molhar o biscoito. Parece que quanto mais velho eu fico, mais prefiro as sutilezas das texturas e menos as potências dos gostos.

Isso significa que, no geral, não entendo bem as transições de pratos. Quer dizer, entendo que busquem intensidades e contrastes, só não sei se funcionam para mim. Talvez se fossem menos intensas? Talvez se fossem menos transições? Só que o objetivo é justamente ser aqueles filmes cheios de reviravoltas. Eu, particularmente, acho uó. Talvez pelo raciocínio oriental ser diferente do ocidental? Japoneses até leem de trás para frente e colocam o objeto antes do verbo, claro que a organização e a cadência das refeições também são diferentes. Contudo, gostos intensos e reviravoltas não são características culinária de lá. Talvez o problema seja o crítico? Talvez. Mas acredito que bons filmes têm beleza e linguagem universais que transcendem fronteiras culturais. Ah, e não fazem reviravoltas só pelas reviravoltas.

Terminados os quentes, vêm os frios. A intensidade continua, até o arroz temperado (shari) leva três tipos de vinagre e ganha uma corzinha, vem ambiente pra morno, ácido, salgadinho, ponto mais, textura e sabor bons. Todas as proteínas ganham pincelada de shoyu, são salgados, umamis e adocicados**. Para mostrar que manja, Keisuke Egashira faz um desfile de formatos, peixes e tratamentos. Peixe em cima (niguirizushi), alga por fora (hosomaki), na tigela (chirashizushi), arroz por fora (uramaki). Corte intermediário de atum gordo (tchutoro), barriga de atum (ootoro), carapau, enguia, ovas de salmão. Marinar, fritar, defumar, cozinhar à vapor, construir molhos. Somente o atum, o rei, é servido como a natureza dá. Keisuke manja, é um desfile de pura beleza. Diferente dos quentes, as transições e combinações de formato, peixes e tratamentos me parecem harmônicas, dosadas, certeiras.

Como manda a tradição, Kan Suke serve omelete (tamago) no fim do degustação (omakase). Eu, que esperava um tamago neutro como sempre, fui surpreendido pela crostinha de açúcar que veio em cima. Sem ser muito doce, eu particularmente adorei, me fez viajar na maionese: é como se o Keisuke Egashira estivesse traduzindo o tamago-como-sobremesa para brasileirês. A gente precisa de açúcar para entender algo como sobremesa e fim da refeição. Se parar para pensar, super poético, não?

Aí, se eu já estava com o queixo no chão pelas ousadias do Kan Suke, as sobremesas (às vezes disponíveis para pedir à parte) fizeram meu queixo roçar os trens da Linha 2-Verde que passam logo abaixo. Restaurantes de sushi no Japão não servem sobremesas, quem dirá sobremesas excepcionais. O pudim sem açúcar, mas sem perda de deliciosidade na textura, me encantou por completo: a calda finalmente faz sentido! Ela adoça e transborda em sabor a neutra massa de leite e ovos perfeitamente cozida. A outra sobremesa é o doce de feijão azuki (anko) com sorvete de baunilha. Quem nunca gostou de anko, provavelmente só comeu os industriais. Os caseiros são bons demais, o sabor característico do azuki vem só no retrogosto, de uma forma suave e deliciosa, nada daquele sabor chapadão e bizarro dos industriais aromatizados.

Por um lado, e eu odeio ser desses, só indo ao Toyosu para provar uma categoria absolutamente distinta de sushis. Não tem motivo para um restaurante de sushi no Brasil ter vontade ou obrigação de ser como os de Tóquio. A insistência em elogiar lugares dizendo “ser um pedacinho de tal país” costuma ser coisa de quem não faz ideia de como analisar, interpretar e elogiar uma comida. E provavelmente sabe bosta nenhuma sobre o tal país. Então, aproveito para alfinetar: quer uma coisa que é um pedacinho do Japão no Kan Suke? As três mulheres da equipe estão escondidas nos fundos e os dois homens estão no balcão. Tenho nenhuma competência para entrar no mérito, mas fica a observação de que algumas raízes são muito, muito profundas.

Por outro lado, se faço tantas viagens e fico procurando pelo em ovo é porque a comida do Kan Suke está no alto nível em que podemos discutir gênero dos anjos. O Kan Suke vale cada centavo e olha que são 40 mil centavos. Indico também para as pessoas que acham que não gostam de sushi. Digo que acham que não gostam porque não existe essa de gostar ou desgostar de uma categoria inteira de comida. Existe sushi bom e ruim, 99% de chance que você só comeu ruim. Embora Keisuke diga ser sazonal e meta o migué da costa brasileira ser continental para explicar como “serve as coisas na sua melhor época” ao mesmo tempo em que “serve as mesmas coisas o ano inteiro”, o Kan Suke é um restaurante de pratos assinaturas. E tudo bem. O que comi é o que todo mundo da internet comeu e será o que você vai comer, a consistência é garantida. Caso não queira arriscar 40 mil centavos, tem o almoço executivo mais em conta. O importante é que você vá, desse sushi, você vai gostar.

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*Em geral, a pasta ou pó de wasabi que comemos é uma mistura de rábano-de-cavalo com mostarda e corante verde. Nunca vi rábano-de-cavalo fresco no Brasil, mas quando provei (desavisado, dei uma mordidona, quase morri!), achei ter aromas e picância igual às do wasabi. Mal sabia eu que, na verdade, o que eu achava ser wasabi era rábano. (Ou seja, rábano tem sabor de rábano, tadá. Haha.) Depois, provei wasabi verdadeiro fresco, ralado na hora, e descobri que wasabi é outros quinhentos. Digo abstratamente ser outro quinhentos porque são muito parecidos em termos de notas aromáticas oferecidas, afinal são todos parentes e picantes: wasabi, rábanos, mostarda, rabanetes e mais um monte de brassica, porque a real é que metade do que comemos é brassica. (E o povo ainda acha que o oligopólio alimentar começou com a Unilever, Nestlé e Pepsico. Haha.) Mas o wasabi tem um conjunto, uma sutileza, uma harmonia que são outros quinhentos.

** Comentário aleatório: sabiam que pitadas de sal quase sempre acompanham pitadas de Ajinomoto e de açúcar no Japão? Explicam ser para “construir/encorpar/realçar o sabor”.

3 comentários em “Kan Suke

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